terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A HISTÓRIA DE M.

M. chegou na Unidade trazida pela vizinha

_ Aqui, doutora, trouxe ela porque está com um grosseiro no corpo e nunca veio consultar.

Estava ali, em pé, na minha frente, vestida em um shortinho vermelho e uma frente única. Tinha uma idade indefinida, talvez mais de 50 anos. Era magra, muito magra, e de pele negra. Seu riso expunha alguns poucos dentes na boca. Não sabia direito o nome completo, muito menos os de seus pais. Ao ser indagada sobre sua data de nascimento, só deu uma risada e tirou do bolso uma identidade amassada e suja, entregando-a na mão de Lindalva, nossa agente administrativa. Resolvemos aproveitar sua presença na Unidade para solicitarmos todos os exames que uma pessoa caminhando para a velhice necessita fazer.

_Doutora ela bebe e, às vezes, desaparece por dias. Nessas ocasiões, fica com qualquer homem.

Foi um alerta para pedirmos, após seu consentimento, exame de HIV. Ao examina-la, vi sua pele seca e cheia de nódulos e pápulas. Apesar da dificuldade em fazer M. colaborar, suspeitei de Hanseníase e encaminhei para exames mais específicos . Dez dias depois, estava novamente frente a frente com M. Ela trazia os exames que confirmavam a Hanseníase e revelavam o que eu já temia : era portadora do vírus do HIV. Olhei para M., ela retribuiu meu olhar com um de seus característicos sorrisos. Teve uma vida difícil. Aos 14 anos, foi viver com um homem de 50, teve 4 filhos, fruto desse relacionamento. Um dia abandonou todos e, aos 23 anos, saiu de São Paulo de carona com um caminhoneiro, vindo parar em um garimpo aqui no MT. Se relacionou com outros dois homens e, desses relacionamentos, ganhou mais cinco filhos. Um deles foi assassinado aos 9 anos e dos outros não tem notícia. Além da falta de contato com os filhos, não sabe de nenhum dos 12 irmãos que deixou em São Paulo. É alcoólatra desde mocinha e já sofreu violência doméstica. Mora num barraco de 2 peças, feito de tábuas e papelão ( Gaba-se, orgulhosa, de tê-lo feito com as próprias mãos).
E agora estava ali na minha frente rindo, rindo com os olhos puros dos insanos, rindo da sua vida, rindo da minha angústia. Perguntei se ela sabia o que era HIV e AIDS, balançou a cabeça negativamente, então expliquei da maneira mais simples que consegui sobre a doença e, depois, finalmente, sobre o resultado de seu exame. Os olhos de M. continuaram rindo, aquele riso sem pudores, sem limites, daqueles que não têm mais nada a perder, dos que zombam da vida. Da vida, que lhes negou tudo, que lhes tirou a beleza e a juventude, sem conseguir, no entanto,tirar -lhes o riso, livre e solto que dança na sua boca sem dentes.

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