sábado, 21 de fevereiro de 2009

A HISTÓRIA DE C.

Estava terminando de fazer um dos milhares de relatórios que temos que preencher no fim de cada mês, quando Leci, nossa técnica de enfernagem, aproximando-se de mim, falou:
_ A dona C. está aí e quer falar com você.
Levantei-me e lá estava C., uma senhora de aproximadamente 45 anos de idade que tinha, há alguns anos, sido esfaqueada pelo vizinho por causa de uma briga sem importância. Continuavam donos de casas vizinhas, mesmo depois de seu mais de um mês de internação por causa da perfuração de vários órgãos. Talvez a prisão em que ele se encontrava no momento tenha aliviado um pouco o clima. "Será que ocorreu mais um problema com a vizinhança?", pensei. Mas apresentou-me outro, de natureza diferente: abuso sexual. Seu genro abusou da própria filha, de 3 anos, e já tinha antecedentes de ter feito o mesmo com o filho há alguns anos, antes de morar no bairro. Lembro que na época C. me relatou que andou com essa criança em várias delegacias e no IML e não resultou em nada. A filha de C. mudou-se para a casa dela há alguns meses, até conseguir alugar uma casa. Havia ido na Unidade poucas vezes e,nessas ocasiões, me chamado a atenção não apenas pela asma crônica e o uso abusivo de medicamentos , mas pelo seu jeito descuidado. Era obesa, vestia-se com desleixo e o cabelo desgrenhado se rebelava contra sua tentativa de prendê-lo. E era triste, profundamente triste. Após C. me relatar o ocorrido, eu disse que gostaria de conversar com sua filha antes de tomar qualquer atitude. No dia seguinte, estavam todos lá: C., sua filha e os netos. Segundo o relato da filha de C., os abusos aconteciam na sua ausência, mas começou a desconfiar por causa do estranho clima na relação de seu marido com as crianças. Os vizinhos e a próprias crianças confirmaram suas suspeitas. Diante disso, liguei para o Conselho Tutelar e coloquei-a na linha para falar com o conselheiro. Marcaram um encontro para o dia seguinte. Passaram-se alguns dias e não tive notícias da família. Um dia, C. reapareceu na Unidade e, revoltada, disse que sua filha e seus netos estavam hospedados numa casa de retaguarda, enquanto seu genro aguardava o julgamento em liberdade, em casa.
_Vê como é, doutora? Eles, que são vítimas, é que estão presos e outro está aí, livre, feliz e, ainda, dentro da nossa casa. Eu não acredito mais em justiça.

Meses se passaram quando Ester, uma das agentes de saúde, me falou que a filha de C. estava morando na sua área e com o marido. Não acreditei. Fiquei revoltada.
Dias depois, vi-a entrando pelo portão da Unidade. A vontade que tive foi de expulsá-la, porque na minha cabeça era inconcebível que alguém perdoasse e voltasse a viver com um homem que colocava seus filhos em risco. Mas me contive ao olhá-la mais detalhadamente. Seu corpo pesado, seu cabelo desgrenhado , seus passos lentos e seus olhos tristes, que insistiam em olhar para o chão. Só por alguns segundos me encarou , mas nesse rápido encontro dos olhos percebi que sabia o que eu pensava, sabia o peso de sua decisão e por isso não conseguia erguer a cabeça e me encarar demoradamente . Ela estava ali, porque não tinha a quem recorrer para tratar de sua asma. Estava ali sozinha e humilhada na sua dor, com seu peito cansado e seus olhos vazios. Percebi que não tinha direito de julgá-la, não era meu papel. Ali eu era a médica e ela precisava de ajuda. Engoli em seco e fui encontrá-la. Não perguntei nada, tampouco ela me falou qualquer coisa.Não precisava. Seus olhos fixos no chão e seus ombros arqueados pelo peso da doença e do sofrimento falavam por si. Ela bem que tentou reagir, mas não conseguiu. Como reagir num país que não pune os culpados, nem protege as vítimas?
E ei-la de volta em sua vidinha triste, em sua doença que não é do corpo e sim da alma, tendo que enfrentar o olhar e a crítica das pessoas. Não sei se agi certo, mas naquele momento a acolhi. Depois tomei outras providências, mas naquele momento a acolhi. Quando o Conselho Tutelar, alertado por nós, foi a casa dela, não mais a encontrou, a casa estava vazia. Vazia como sua vida, vazia como seu peito.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

PASSEIO

Amanheceu e o dia estava lindo e quente, típico de Cuiabá. "Ainda bem!", pensei . Assim não atrapalharia nosso passeio. Cheguei à Unidade às sete da manhã e alguns idosos já estavam lá sentados, bem à vontade, de bermudas e chinelos, carregando nas mãos a sacolinha com seus pertences(toalha, muda de roupa,etc). Iríamos fazer um passeio com eles. Uma chácara perto da Ponte de Ferro, do irmão da Maíldes (vigia da Unidade), era o que nos esperava. Há um mês organizávamos esse passeio. Foi trabalhoso. Todos os funcionários da Unidade se envolveram com os preparativos, desde arrumar um local para onde pudéssemos ir e levá-los, até a condução , o cardápio, gás, água, copos descartáveis e outras coisas mais. Dividimos as tarefas e cada um de nós se responsabilizou por alguma coisa, depois rateamos as despesas e, apesar das diversas dificuldades que foram aparecendo, fomos em frente.Criamos equipes da cozinha, de compras, da condução, de primeiros socorros, entre outras, para dividirmos melhor o trabalho e a responsabilidade.




O lugar

E ali estava o grande dia. Verifico se está tudo em ordem.
"Alguem lembrou do adoçante?", perguntei.
Temos alguns idosos diabéticos. Tudo em cima. A nossa equipe é dez. A maletinha de Primeiros Socorros ( minha tarefa) está pronta, dentro tem de tudo: estetoscópio, aparelho de pressão, remédios anti- hipertensivos, material de curativo, etc, para qualquer eventualidade. Só faltava o ônibus chegar. "Tomara que chegue.", pensei. E, para a nossa alegria, lá estava ele. Esperamos um pouco os atrasados e partimos.


Banho de rio

O local era lindo e confortável, o rio era limpo , raso e bem perto da casa. O terreno era cheio de mangueiras e o chão coberto de mangas, para nosso deleite. A equipe da cozinha já iniciava os preparativos para o almoço, os idosos seguiram direto para o rio e nós atrás deles, como fora combinado (não deixá-los sozinhos dentro de um rio um minuto sequer). O rio estava delicioso e tranquilo, servimos bolachas e suco lá mesmo , pra que eles aproveitassem o máximo o frescor e a beleza do lugar. Depois do almoço, contamos piadas, rimos e dançamos forró, vanerão e rasqueado. Alguns dormiram um pouco e outros voltaram para o rio. Chegava a hora de partirmos e os idosos estavam relutantes em deixar esse lugar onde ficaram livres do fardo da doença e da idade, onde foram protagonistas e tiveram um tratamento especial sem precisar se preocupar com filhos, netos , comida, casa, nada e onde riram, dançaram e brincaram feito crianças.

Dança

Embarcaram no ônibus, não sem dar uma última olhada nesse pequeno paraíso, como se quisessem ter a certeza que o guardariam na memória, muitas vezes já falha, gasta pelo tempo. Agora voltavam para a realidade: a realidade da vida difícil, a realidade de ser apenas coadjuvante dentro de sua própria vida, a realidade que se aproximava junto com o ônibus. Seus rostos mudavam gradativamente, voltavam a apresentar as rugas e o olhar triste, voltavam à condição de idosos e doentes. Reassumiam as identidades esquecidas por algumas horas. As pernas, que há pouco rodopiavam dançando, voltavam a pesar como montanhas e os ombros curvavam-se com o peso do corpo, que há pouco boiava leve no rio. As cenas do paraíso iam ficando distantes à proporção que se descortinavam através das janelas e da poeira os telhados simples e as casas de um outro Paraíso.


Despedida

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A CHEGADA

Eu, pouco tempo depois da chegada em Cascalheira.


_"Estamos chegando!"
Anunciou o piloto do monomotor, do qual eu era a única passageira. Isso, depois de muita insistência e muita lábia para conseguir que o então prefeito de Barra do Garças autorizasse a viagem no avião do governo até Cascalheira, pois a estrada , que não era asfaltada, estava interrompida pelas chuvas abundantes. O ano era 1980. Eu havia recém terminado a Residência Médica em Infectologia em S. Paulo e havia resolvido não ficar em cidade grande, a fim de atuar em um lugar onde eu fosse necessária, fizesse diferença. Havia escrito uma carta endereçada ao bispo Pedro Casaldáliga, de S. Felix do Araguaia (MT), onde expunha o meu interesse em trabalhar na região. Conhecia seus livros e me identificava com o trabalho e com as lutas travadas ali, em que a igreja, na época chamada Progressista , defendia, contra o latifúndio, os pequenos agricultores, posseiros e índios. Sinceramente não esperava resposta, por isso, quando ela chegou, fiquei perplexa. Quem me respondeu foi Bia, enfermeira e freira francesa que morava e trabalhava há vários anos em Cascalheira, pequena cidade do município de Barra do Garças, que fazia parte da Prelazia de S. Felix do Araguaia. Pouco tempo depois, veio me conhecer, junto como o médico que trabalhava com ela, mas que estava retornando a S. Paulo porque sua esposa não se adaptara ao local. Conversamos e marcamos uma ida minha para conhecer a região , seria durante um encontro com representantes que trabalhavam na área de saúde nos municípios que faziam parte da Prelazia. Foi uma viagem e tanto. Com trechos realizados por terra e outros em pequenos aviões. Adorei o lugar e o trabalho que estava sendo realizado ali. As pessoas eram simples e verdadeiras. Os poucos médicos que lá existiam trabalhavam por ideal, vivendo simplesmente como o povo, e eram felizes. Naquele encontro decidi que era ali e daquele jeito que queria exercer minha profissão.
E agora, ali estava eu, sobrevoando o lugar que escolhera para ficar. Dali de cima, parecia muito pequeno, pequenino mesmo.

_"Será que tem alguma condução me esperando lá? Porque ninguém sabe que chego hoje."
Perguntei ao piloto.
_"A Sra. pode ficar descansada eu dou umas voltinhas sobrevoando a cidade, é o aviso que tem passageiro e logo alguém vem buscar."
Respondeu ele.
Lembro de minha mãe chorando e meu pai com os olhos cheios d'água, mas me dando força para que seguisse o meu destino. Eles não conseguiam entender minha opção. Deixar de trabalhar em um grande e renomado hospital em S. Paulo, do qual tinha recebido convite, e escolher morar num "fim de mundo", ganhando muito menos.
Olhei de novo para a cidadezinha, cada vez mais próxima, e lembrei da distância que me separava da minha família, da minha casa, dos meus amigos, da minha vida, enfim.
Aterrissou levantando pó. E ali ia eu iniciar uma nova etapa da minha vida.
Olhei para trás, só vi poeira.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

EQUIPE


Nara e Tonha.


Marinete, Tonha e Vanusa.


Leci, Marinete, Lindalva, eu, Tonha, Teresa e Ester.

Outro dia estava refletindo sobre o que é uma equipe. São pessoas que trabalham juntas em prol de um objetivo comum? É uma definição assim como tantas outras, mas nenhuma delas capta o verdadeiro sentido da palavra. O sentimento que une as pessoas vai além de apenas um objetivo comum. A equipe da qual faço parte, por exemplo, é interessante. Composta só por mulheres, de todos os tipos, crenças e religiões. Algumas acordam de mau-humor, outras têm TPM. Algumas são desbocadas, outras conservadoras. Tem gente negra, tem gente branca. Umas evangélicas, umas católicas, umas sem religião... Algumas querem emagrecer, outras, engordar. Algumas são bem grandes, enquanto outras esqueceram de crescer. Umas gostam de mandar, outras não querem obedecer. Umas estão casando, outras se separando, outras ainda esperam marido. Algumas são mais reservadas, outras, mais debochadas. Tem gente na menopausa, tem gente esperando o primeiro filho. Tem gente na equipe há dez anos, tem gente na equipe há um mês. Algumas falam o que pensam, algumas ficam caladas. Existem conflitos, momentos difíceis, mas existe união. Lava-se a roupa suja, quebra-se o pau, mas existe respeito, solidariedade. Somos diferentes. De origens e culturas diferentes. Mas nos aceitamos e somos cúmplices em nossas divergências. Estamos juntas nas festas e casamentos, mas também nas tristezas e decepções. Acredito que exatamente por sermos tão opostas é que nos completamos, é que conseguimos analisar um fato no exercício da construção coletiva. Com perspectivas diversas, através de olhares diferenciados. Assim, podemos construir uma imagem mais próxima da realidade. Podemos exercitar nossa tolerância e reinventar nossos limites. É por isso que formamos uma grande equipe.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A HISTÓRIA DE M.

M. chegou na Unidade trazida pela vizinha

_ Aqui, doutora, trouxe ela porque está com um grosseiro no corpo e nunca veio consultar.

Estava ali, em pé, na minha frente, vestida em um shortinho vermelho e uma frente única. Tinha uma idade indefinida, talvez mais de 50 anos. Era magra, muito magra, e de pele negra. Seu riso expunha alguns poucos dentes na boca. Não sabia direito o nome completo, muito menos os de seus pais. Ao ser indagada sobre sua data de nascimento, só deu uma risada e tirou do bolso uma identidade amassada e suja, entregando-a na mão de Lindalva, nossa agente administrativa. Resolvemos aproveitar sua presença na Unidade para solicitarmos todos os exames que uma pessoa caminhando para a velhice necessita fazer.

_Doutora ela bebe e, às vezes, desaparece por dias. Nessas ocasiões, fica com qualquer homem.

Foi um alerta para pedirmos, após seu consentimento, exame de HIV. Ao examina-la, vi sua pele seca e cheia de nódulos e pápulas. Apesar da dificuldade em fazer M. colaborar, suspeitei de Hanseníase e encaminhei para exames mais específicos . Dez dias depois, estava novamente frente a frente com M. Ela trazia os exames que confirmavam a Hanseníase e revelavam o que eu já temia : era portadora do vírus do HIV. Olhei para M., ela retribuiu meu olhar com um de seus característicos sorrisos. Teve uma vida difícil. Aos 14 anos, foi viver com um homem de 50, teve 4 filhos, fruto desse relacionamento. Um dia abandonou todos e, aos 23 anos, saiu de São Paulo de carona com um caminhoneiro, vindo parar em um garimpo aqui no MT. Se relacionou com outros dois homens e, desses relacionamentos, ganhou mais cinco filhos. Um deles foi assassinado aos 9 anos e dos outros não tem notícia. Além da falta de contato com os filhos, não sabe de nenhum dos 12 irmãos que deixou em São Paulo. É alcoólatra desde mocinha e já sofreu violência doméstica. Mora num barraco de 2 peças, feito de tábuas e papelão ( Gaba-se, orgulhosa, de tê-lo feito com as próprias mãos).
E agora estava ali na minha frente rindo, rindo com os olhos puros dos insanos, rindo da sua vida, rindo da minha angústia. Perguntei se ela sabia o que era HIV e AIDS, balançou a cabeça negativamente, então expliquei da maneira mais simples que consegui sobre a doença e, depois, finalmente, sobre o resultado de seu exame. Os olhos de M. continuaram rindo, aquele riso sem pudores, sem limites, daqueles que não têm mais nada a perder, dos que zombam da vida. Da vida, que lhes negou tudo, que lhes tirou a beleza e a juventude, sem conseguir, no entanto,tirar -lhes o riso, livre e solto que dança na sua boca sem dentes.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

IMPOTÊNCIA

Seus olhos fitam os meus, assustados, buscando uma saída, uma resposta. Permaneço em silêncio. Procuro por essa resposta dentro de mim, mas tudo parece sem sentido.

_Sabe, doutora, eu pensei que pela primeira vez na vida eu ia ser feliz. Por que isso foi acontecer comigo?

Olhar negro como sua pele, roupa triste, mãos incertas. Os soluços fazem tremer seus ombros e questionam minhas certezas.
Levanto-me. Deixo a proteção de minha mesa e estendo-lhe os braços. Abraçamo-nos. Apenas duas mulheres sofrendo de formas diferentes a mesma dor. Apenas mulheres. Acima de tudo, mulheres.
Difícil foi resolver criar um blog. Embora várias pessoas, entre amigos e família, me incentivassem para tal, tive sempre receio de me expôr demais. O que realmente me fez decidir pelo sim foram meus alunos de Medicina que, indiretamente, me fizeram ver a importância de mostrar a realidade do dia a dia de uma Unidade de Saúde da Família, além das dificuldades por que passam a maioria dos brasileiros moradores das periferias. Aqui estarão escritas histórias reais de pessoas muito reais e as angústias e dificuldades que nós, profissionais de saúde das unidades de saúde da família, passamos na tentativa de resolver e/ou minorar esse enorme leque de problemas que nos chegam muitas vezes como um apelo.É claro que as identidades serão mantidas sobre sigilo e os nomes serão fictícios.