segunda-feira, 30 de março de 2009

A HISTÓRIA DE C.

Dona C. vinha sempre à Unidade. Era, em tal época, uma senhora com menos de 60 anos, obesa e só, muito só. Seu marido a abandonara e aos filhos, que são vários e, em suas palavras, "espalhados nesse mundão de Deus", há mais de quinze anos. Dos paradeiros, só tinha certeza do de uma filha, que mora na cidade, mas em outro bairro. Dos outros não sabia: há muitos anos que nenhum deles vinha visitá-la. Nem para tomar conhecimento de seu estado de saúde, bastante delicado por causa da hanseníase passada e pela hipertensão, obesidade e artrose, nem para saber como (e se) conseguia sobreviver com seu analfabetismo, sua impossibilidade de trabalhar e a falta de idade, a física incompatível com a cronológica, que a permitisse se aposentar. Morava num barraquinho de madeira de uma só peça e se alimentava graças às cestas básicas doadas ora pela Unidade, ora por sua igreja. Vivia a penúria.
Vizinho da frente, o Sr. M., também sozinho, morando em condições tão precárias quanto C., sem aposentadoria e sofrendo algumas mesmas patologias dela, sobrevivia das cestas básicas que a vizinha ganhava, o mesmo ocorrendo quando quem recebia era ele. Além disso, um cuidava do outro e quando estavam doente, o que estava melhor avisava naUnidade que o outro precisava de socorro.

_ Por que a senhora não casa logo com seu M.?

Perguntávamos sempre a ela. Ao que ela respondia, a fim de encerrar o assunto:

_ Não posso. Ainda sou casada.

Sim, ela permanecia fiel, apesar do marido não dar sinal de vida.

Quando completou 60 anos, finalmente, recebeu a notícia do falecimento do marido junto com o atestado de óbito e o direito de receber uma pensão. Ficou feliz e a raiz dessa felicidade era a ajuda que o marido, ao menos depois de morto, tinha deixado pra ela. Não demorou muito, apareceu-me na Unidade acompanhada de um mulato alto e magro de ar debochado:

_ Olha, trouxe a minha mãe pra consultar, porque ela não está passando bem. Tem problema de fígado.

Olhei para o rapaz, que, prontamente, devolveu meu olhar. Parecia fazer pouco de todos, manipulando na boca um palito de dentes e sua presença me irritou, porque eu já sabia o motivo da visita após tantos anos de silêncio.

Respondi com rispidez:

_ Acho que conheço as doenças da sua mãe melhor que você. Há cinco anos trato dela. Onde esteve durante esse tempo?

Antes que pudesse esboçar uma resposta, Dona C. interveio em sua defesa:

_ É meu filho, doutora. Veio com a família passar um tempo comigo, porque está desempregado.

Minha vontade foi retrucar perguntando o porquê de ele não tê-la visitado quando estava empregado e ela passando fome, mas resolvi matar a pergunta na garganta. Não ia adiantar. Ela era mãe, sempre iria defender o filho. A felicidade de tê-lo por perto era infinitamente maior que qualquer dinheiro. Depois de algum tempo, o filho foi embora com a família e nunca mais deu notícias. Tonha Mara, uma das técnicas de enfermagem, disse:

_ Agora já pode casar!

Disse sim, mesmo sem responder com palavras e acatou a idéia.

Por essa época, o barraquinho de madeira transformara-se em uma casinha pequenina de tijolos, construída por vizinhos e fiéis da igreja. Assim, resolvemos fazer um chá de panela para o casal.
Fizemos um lanche na Unidade e cada um de nós levou um presente. Pratos, talheres, panelas e outros utensílios domésticos que julgamos mais importantes. Foi uma festa animada, eternizada em fotografias. Depois, os dois se foram empurrando um carrinho de mão cheio de presentes.
O casamento se concretizou no fim de semana seguinte, presente da comunidade da igreja, a quem devolveram em forma da alegria de permanecerem, mesmo em frente a tantas dificuldades, unidos até hoje. Andam sempre juntos: ela na frente, ele logo atrás. Os filhos continuam ausentes, mas ela se acostumou a fingir que não se importa. Vêm sempre na Unidade. Nunca respeitam dia marcado ou horário de consulta, simplesmente chegam, consultam-se, recebem seu medicamento, conversam um pouquinho e partem. Tranquilos e satisfeitos, porque vivem, comem, têm um teto que não desaba por causa da chuva, porque têm um ao outro. Seguem a vida por insistência, coragem e solidariedade dos que têm tão pouco quanto eles. Seguem-na por respeito, sina, desafio, amor, mas sem lamento,apenas com dignidade.

sexta-feira, 20 de março de 2009

MIGRANTE

Transito diariamente entre dois mundos, eles se tocam, arranham-se,relacionam-se, mas não se misturam. Convivem lado a lado, como fotografias estáticas da realidade,olham-se com olhos da imaginação até onde é permitido olhar, mas não se vêem. Poucos têm acesso à pequena passagem que permite adentrá-los, entendê-los. Em cada um deles exerço um papel diferente. Em um sou mãe, dona de casa , filha, amiga, aluna. No outro, médica, professora, advogada, psicóloga. Nasci em um deles e o outro escolhi para viver. Um é meu abrigo, meu refúgio, meu silêncio.O outro, meu campo de batalha, minha luta, meu ideal, embora nem sempre esses papéis fiquem assim claramente definidos no meu dia a dia. Sou migrante em ambos e, ás vezes, sinto que não pertenço a nenhum. Viajante, forasteira da minha vida, carrego na bagagem lembranças de todos os mundos que vivi. Sou formada de retalhos , vivências de idas e vindas. Tiro da bagagem sentimentos antigos, mofados pelo tempo, e tento revivê-los numa realidade emergente que ignora velhos conceitos e que se impõe buscando novas definições ainda inexistentes.
São cinco horas da tarde, hora de partir. Pego o ônibus e vagueio no limite entre os dois mundos. No trajeto vão ficando rastros de uma outra vida. Olho para minhas mãos pequenas e frágeis, conheço cada marca, cada sulco. Chego em casa, abro a porta e limpo os pés no tapete, retiro os vestígios de uma realidade agora distante. Entro despida, sem resíduos, apenas as marcas no rosto e o cansaço de lutas travadas, de lutas perdidas. Nos olhos, migalhas de sonhos.

domingo, 15 de março de 2009

A HISTÓRIA DE E.

Rua do bairro Novo Paraíso


A primeira vez que vi E. foi na Unidade de Saúde, trazido pela mãe. Esta já havia me falado que ele estava enfraquecido, quase não conseguia andar e tossia muito. Realmente estava com os olhos fundos e o corpo magro e fraco pela doença que o consumia, a tosse era constante. Rapaz franzino, era dono d'uns olhos assustados, que pareciam muito grandes, emprestados, para o rosto fino. Tinha todos os sintomas de tuberculose. Depois de confirmada a doença, E. começou o tratamento. No início, recebia-o em casa através da agente de saúde, posteriormente, já mais forte, ia diariamente na unidade tomar os medicamentos, até se recuperar completamente.
E. possuia, além da mãe, dona C., hipertensa e com crises de histeria diante de algum aborrecimento(e eram muitos), dois irmãos: o mais novo, na época com aproximadamente quatorze anos, já havia tratado de hanseníase e uma irmã que, junto com o namorado, era usuária de droga , já tendo sido encaminhada para tratamento. E era casado. Sua mulher fez o pré-natal de todos os quatro filhos, um perdido antes de nascer, na Unidade.

E. trabalhava esporadicamente em bicos, mas seu sustento maior provinha da "boca de fumo" que tocava.

Alguns anos depois desse primeiro contato, numa segunda feira, quando cheguei ao Posto, fui informada de que E. havia sido baleado, enquanto caminhava, por uma espingarda "doze". Socorrido a tempo, ficou internado no Pronto Socorro, onde ficou em recuperação, lenta, por causa da gravidade do ferimento. Assim que recebeu alta do hospital, foi à Unidade fazer curativos. Nessa ocasião, alertei-o:



_ Preste atenção, E., por duas vezes você quase morreu. Está dado o alerta. Você tem mulher e filhos para criar. Olhe o que vai fazer da sua vida.



_ Eu sei, doutora. Tô pensando em mudar para outro lugar e começar uma nova vida.



Ali, vi que não era mais o rapaz magro, cujos olhos não lhe pertenciam, e inseguro de antes. Era um homem. Um bom pai, um bom filho(Quando a mãe adoecia, não media esforços, entre consultas com especialistas e medicamentos). Chegava ao Posto de forma humilde, tratava com respeito os funcionários, todos gostavam dele. Ouvia-me calado, de forma respeitosa, com a cabeça baixa. Aos poucos foi melhorando e, não precisando mais da visita frequente, sumiu.

Sua família continuou indo regularmente à Unidade, mas ele nunca mais apareceu.

Ano passado fiquei sabendo que ele foi preso. O cunhado, que tinha ficado responsável pela "boca", também foi preso, poucos dias depois. Segundo os moradores do bairro, sua mulher e sua irmã é que deram continuidade ao negócio. Nesse contexto, Dona C., a mãe de E., teve uma de suas crises, inconformada com a prisão do filho, de acordo com ela, uma injustiça. Lembrei-lhe que E. já era um homem, portanto, consciente de seus atos. Emendei entregando-a a esperança de que, estando no Brasil, não demoraria a ser solto. E foi o que aconteceu.

N., a esposa de E., disse-me que ele está trabalhando agora. Não sei se aguentará por muito tempo trabalhar de sol a sol, em serviço pesado, para ganhar um salário mínimo. O sistema em que vivemos não ajuda na recuperação de ninguém. Olho seus filhos brincando na porta de casa com outras crianças e prevejo seus futuros. Que chance eles têm de trilhar caminhos diversos do caminho de seu pai? A realidade que vivem é essa e ela é o seu paramêtro de normalidade.

Ruas esburacadas, sem asfalto, casas pobres, bares cheios, porque dentro deles existe o único lazer que se encontra por aqui: a bebida. De fácil acesso, barata, ela funciona como um remédio fácil para as dores da alma, geradora de violência e morte.

Para as crianças, chapinhar na lama e brincar de polícia e bandido são as fontes de prazer. Agora, que ainda estão aqui brincando na porta de casa, a polícia é encarada com respeito. Respeito que mais tarde se transformará em raiva e revolta, porque crescerão vendo seus pais, irmãos e vizinhos sendo agredidos e presos. Nunca entenderão porque isso só acontece a eles. Hoje, jamais ouviram falar de injustiça social. Cumprimentam-me e me abraçam quando ando pelas ruas. Eu os conheço desde antes de olharem o mundo pela primeira vez. Detenho-me em seus rostinhos alegres e sujos, seus olhos cheios de sonhos, comuns a todas as crianças. Mesmo E., um dia, já partilhou deles. Com o tempo, os sonhos se transformarão em pó e acabarão misturados com o pó das ruas, depositados nas esquinas enlameadas dessa vida que não lhes permite existir eternamente. Lá se vão eles rindo, brincando, correndo no pó, sem saber que pisam os sonhos de outras crianças, que hoje já não sonham mais, já nem vivem mais.

domingo, 8 de março de 2009

MULHERES





Elas vão chegando lentamente, no ritmo que o calor de 40° imprime às pessoas. Mas às sete horas da manhã já estão na Unidade, normalmente acompanhando alguém, porque são elas que cuidam do mundo. São meninas risonhas ou idosas caladas. Carregam pelas mãos maridos, pais , sogros e filhos. Estes nos chegam nos ventres volumosos, no colo, nas mãos, e às vezes são tão numerosos que, não tendo onde segurar, se agarram na saia ou nas pernas delas. Elas ficam na fila pra marcar consulta, levam as crianças para vacinar, vão conversar comigo pra ver se dou um atestado pro marido ou filho, que faltou ontem o serviço, enquanto seus companheiros ficam sentados batendo papo. São elas que marcam e comparecem à consulta com os maridos e também, muitas vezes, falam por eles. E cuidam dos idosos e doentes, levam os filhos à escola e/ou creche. São elas as que mais sofrem com o desemprego, são quem ouve as queixas das crianças, e como são cruéis, quando querem alguma coisa que o salário curto não pode comprar. Transformam-se em negociantes nos comércios afora para conseguir comprar sem dinheiro a comida e sua imprenscindibilidade. São arrumadeiras, cozinheiras, lavadeiras. São crianças a chorar ao serem agredidas, esquecidas. Sim, porque só são lembradas e priorizadas quando estão grávidas e, assim mesmo, não o são por elas, mas pelo filho que carregam. Amamentam, embalam os filhos que muitas vezes,mais tarde, as abandonarão, sozinhas, na sua velhice. Vão visitar maridos e filhos na cadeia, sempre inocentes e injustiçados. Raramente os abandonam, diferente de quando ocorre o contrário, quando não são visitadas e a maioria das vezes acabam abandonadas. Vejo-as indo embora, subindo a rua carregando os seus, são mulheres, são Marias, tão cantadas nas músicas, tão invisíveis na vida real. Vão subindo as ruas no mesmo passo lento com que chegaram, pra que a pressa? A vida pra elas não muda.

_ Para que estudar? Vou ser doméstica mesmo. Disse uma das Marias à Nara, enfermeira da Unidade, quando questionada sobre o porquê de ter parado de estudar.

Vão, aos poucos, afastando-se, sumindo da minha vista, escondendo-se do meu olhar, mas permanecem continuamente comigo. Não como as Marias, para mim têm identidade própria , vida própria, talvez não a que pediram, que elas vão levando com a garra e a coragem que só as mulheres conhecem .Lá se vão, anônimas e invisíveis , carregando o mundo.

terça-feira, 3 de março de 2009

O ônibus percorre as ruas rumo ao seu destino, como sempre. Seus passageiros permanecem em silêncio, pensativos ou, quem sabe, enfadados do dia a dia. Alguns cochilam, outros olham para o nada. Eu os observo, reconheço-os, apesar de estranhos, afinal faço esse mesmo trajeto há 11 anos.
Por que? Meu pensamento voa tentando recordar o exato momento da minha vida em que fiz essa escolha. Busco essa resposta lá no fundo, nos porões da memória, bato em cada porta procurando esse momento. Em cada porta esconde-se um pedaço da minha vida. Minha infância na vila militar onde morava, vendo as pessoas passarem com suas pernas enormes, inchadas por causa da filaria. Na adolescência, alegre e descompromissada, lendo poesias de Castro Alves, Gonçalves Dias, Omar Khayamm, sempre com um nó no peito ao olhar o quadro pendurado na sala de minha casa, linda tela, que sempre significou para mim a comunhão entre o homem e a natureza. Entre mim e a natureza. Na faculdade, vítima da ditadura militar e consciente das injustiças sociais. Os trechos da minha vida voam libertos no meu consciente como pequenos pirilampos que acendem e apagam rapidamente antes que consiga agarrá-los. Estou confusa, não encontro uma resposta, não consigo captar o momento que busco. O ônibus pára, eu salto e entro na rua sem pavimentação, as casinhas pequeninas e humildes me contam histórias de vidas simples. Me aproximo do portão da Unidade de Saúde, algumas pessoas me aguardam na calçada.

_ Dra, poderia conversar um pouquinho com a senhora?Pergunta uma paciente.
_ Sabe, doutora, se eu ganhar algum dia na sena vou lhe dar um carro de presente, promete outro.
_ Não se esqueça de contratar o motorista, respondo, e todos rimos e entramos.
Agora percebo porque não consigo definir o momento exato em que decidi trilhar esse caminho mais dificil e mais longo. Simplesmente não existe esse momento, a cada passo , a cada gesto, a cada olhar ,eu reafirmo essa opção. Diariamente, continuamente , não foi uma decisão de momento, foi decisão de uma vida.