domingo, 15 de março de 2009

A HISTÓRIA DE E.

Rua do bairro Novo Paraíso


A primeira vez que vi E. foi na Unidade de Saúde, trazido pela mãe. Esta já havia me falado que ele estava enfraquecido, quase não conseguia andar e tossia muito. Realmente estava com os olhos fundos e o corpo magro e fraco pela doença que o consumia, a tosse era constante. Rapaz franzino, era dono d'uns olhos assustados, que pareciam muito grandes, emprestados, para o rosto fino. Tinha todos os sintomas de tuberculose. Depois de confirmada a doença, E. começou o tratamento. No início, recebia-o em casa através da agente de saúde, posteriormente, já mais forte, ia diariamente na unidade tomar os medicamentos, até se recuperar completamente.
E. possuia, além da mãe, dona C., hipertensa e com crises de histeria diante de algum aborrecimento(e eram muitos), dois irmãos: o mais novo, na época com aproximadamente quatorze anos, já havia tratado de hanseníase e uma irmã que, junto com o namorado, era usuária de droga , já tendo sido encaminhada para tratamento. E era casado. Sua mulher fez o pré-natal de todos os quatro filhos, um perdido antes de nascer, na Unidade.

E. trabalhava esporadicamente em bicos, mas seu sustento maior provinha da "boca de fumo" que tocava.

Alguns anos depois desse primeiro contato, numa segunda feira, quando cheguei ao Posto, fui informada de que E. havia sido baleado, enquanto caminhava, por uma espingarda "doze". Socorrido a tempo, ficou internado no Pronto Socorro, onde ficou em recuperação, lenta, por causa da gravidade do ferimento. Assim que recebeu alta do hospital, foi à Unidade fazer curativos. Nessa ocasião, alertei-o:



_ Preste atenção, E., por duas vezes você quase morreu. Está dado o alerta. Você tem mulher e filhos para criar. Olhe o que vai fazer da sua vida.



_ Eu sei, doutora. Tô pensando em mudar para outro lugar e começar uma nova vida.



Ali, vi que não era mais o rapaz magro, cujos olhos não lhe pertenciam, e inseguro de antes. Era um homem. Um bom pai, um bom filho(Quando a mãe adoecia, não media esforços, entre consultas com especialistas e medicamentos). Chegava ao Posto de forma humilde, tratava com respeito os funcionários, todos gostavam dele. Ouvia-me calado, de forma respeitosa, com a cabeça baixa. Aos poucos foi melhorando e, não precisando mais da visita frequente, sumiu.

Sua família continuou indo regularmente à Unidade, mas ele nunca mais apareceu.

Ano passado fiquei sabendo que ele foi preso. O cunhado, que tinha ficado responsável pela "boca", também foi preso, poucos dias depois. Segundo os moradores do bairro, sua mulher e sua irmã é que deram continuidade ao negócio. Nesse contexto, Dona C., a mãe de E., teve uma de suas crises, inconformada com a prisão do filho, de acordo com ela, uma injustiça. Lembrei-lhe que E. já era um homem, portanto, consciente de seus atos. Emendei entregando-a a esperança de que, estando no Brasil, não demoraria a ser solto. E foi o que aconteceu.

N., a esposa de E., disse-me que ele está trabalhando agora. Não sei se aguentará por muito tempo trabalhar de sol a sol, em serviço pesado, para ganhar um salário mínimo. O sistema em que vivemos não ajuda na recuperação de ninguém. Olho seus filhos brincando na porta de casa com outras crianças e prevejo seus futuros. Que chance eles têm de trilhar caminhos diversos do caminho de seu pai? A realidade que vivem é essa e ela é o seu paramêtro de normalidade.

Ruas esburacadas, sem asfalto, casas pobres, bares cheios, porque dentro deles existe o único lazer que se encontra por aqui: a bebida. De fácil acesso, barata, ela funciona como um remédio fácil para as dores da alma, geradora de violência e morte.

Para as crianças, chapinhar na lama e brincar de polícia e bandido são as fontes de prazer. Agora, que ainda estão aqui brincando na porta de casa, a polícia é encarada com respeito. Respeito que mais tarde se transformará em raiva e revolta, porque crescerão vendo seus pais, irmãos e vizinhos sendo agredidos e presos. Nunca entenderão porque isso só acontece a eles. Hoje, jamais ouviram falar de injustiça social. Cumprimentam-me e me abraçam quando ando pelas ruas. Eu os conheço desde antes de olharem o mundo pela primeira vez. Detenho-me em seus rostinhos alegres e sujos, seus olhos cheios de sonhos, comuns a todas as crianças. Mesmo E., um dia, já partilhou deles. Com o tempo, os sonhos se transformarão em pó e acabarão misturados com o pó das ruas, depositados nas esquinas enlameadas dessa vida que não lhes permite existir eternamente. Lá se vão eles rindo, brincando, correndo no pó, sem saber que pisam os sonhos de outras crianças, que hoje já não sonham mais, já nem vivem mais.

Um comentário:

  1. Acabamos de fazer a leitura habitual do seu blog. Lindo texto, mãe.

    beijo

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