domingo, 19 de julho de 2009

ESPERANÇA


A igrejinha

Chegou na Unidade falando alto, alegre e independente. Era um senhor de aproximadamente 70 anos com boa estatura e forte, com uns quilos excedentes visíveis na barriga. Natural de Santa Catarina, mas sua última estadia antes de chegar em Cuiabá havia sido Rondônia, de onde veio para ser pastor de uma igreja evangélica. Moravam ele, a esposa e a neta numa casinha simples de madeira, com dois cômodos, construída no terreno nos fundos da igreja. No dia em que apareceu, quando aferimos sua pressão estava bem elevada, expliquei-lhe a necessidade do tratamento e as possíveis complicações caso não o fizesse. Seu P. após dar-me um sorriso balançou a cabeça negativamente e falou: -Não vou tratar não doutora, não precisa, Deus cuida de mim. Argumentei: -Deus tem mais coisa o que fazer, por isso delegou ao homem essa tarefa. Não o convenci. Disse-me que eu não tinha fé bastante para acreditar que Deus o curaria. Despediu-se com um sorriso condescendente. Os meses se passaram e seu P., mesmo frequentando a Unidade com sua esposa, continuava recusando o tratamento. Um dia chegou-me a notícia de que ele havia sofrido um AVC (derrame) durante a noite e havia sido internado. Permaneceu durante aproximadamente 1 mês no hospital, vindo a receber alta com sequelas relevantes. Fui visita-lo assim que voltou pra casa. Deitado, com paralisia de um lado do corpo, transformare-se em homem franzino e dependente. Ao me ver começou a chorar e balbuciar frases desconexas, de impossível entendimento. Tentei acalma-lo dentro de sua fé, mas seus olhos eram só desespero. Não conseguia e nem precisava falar, seus olhos fizeram esse papel. Os meses que se seguiram foram difíceis, pois teve que repetir exames e ir a diversos especialistas e tudo isso dependia de ambulância, cadeira de rodas e acompanhantes e, como nem sempre conseguíamos que chegasse na hora marcada,muitas vezes acabava não sendo atendido. Acontecia de o profissional ainda estar no serviço e se recusar a atendê-lo por causa do atraso, resultando em atritos constantes entre a Unidade e os serviços de Atenção Secundária. Mais tempo se passou e a Igrejinha, agora fechada, não tinha mais fiéis, o pastor, que antes lhes levava conforto através da palavra de Deus, agora estava prisioneiro de seu próprio corpo, deitado numa cama, ali, bem perto.Dessa vez, era ele quem precisava de uma palavra, de um alento, precisava de toda a sua fé. Aos poucos foi ficando mais prisioneiro: seus membros foram atrofiando por causa da falta de fisioterapia, que não pôde fazer pela dificuldade de condução. Conseguimos que a fisoterapeuta fosse algumas vezes em sua casa, mas isso pouco adiantou. Continuava chorando quando eu ia visita-lo, agora pedia para voltar para sua terra, perto de seus parentes. Tentei, através de uma reportagem em um jornal da cidade e cartas para as Secretarias de Promoção Social do Estado e Município, conseguir passagens para ele, a mulher e a neta embarcarem para Santa Catarina, mas nada consegui. Continuou ali, deitado no seu canto, bem tratado pela família, mas infeliz. As lágrimas continuavam escorrendo quando me via, e eu, sem respostas, sem nada para dar-lhe, apenas o conforto de uma voz amiga. Hoje sua Igrejinha voltou a funcionar sob o comando de um novo pastor, com suas bênçãos, e ele teve uma infecção de pele que evolui de forma rápida para uma necrose. Está internado e deverá sofrer uma amputação, provavelmente de parte do pé. Sua esposa não queria interna-lo apelando mais uma vez para Deus, dessa vez fui mais dura e incisiva e consegui demovê-la da ideia de tratá-lo em casa. Passo pela Igrejinha, agora em reforma,entro, e, enquanto os pintores fazem seu serviço, olho para o crucifixo preso à parede e lembro da fé de seu P., a fé que o fazia viver a vida sem enxergá-la, que o fazia encontrar explicações para tudo, mas que agora não consegue dar-lhe paz. Olho para o cruxifico e vejo um Deus tão próximo e tão distante, que exige sacrifícios de quem viver já é um sacrifício, com a promessa de um paraíso, quiçá diferente deste. As Igrejas se multiplicam nos bairros pobres, multiplicam-se porque espalham esperanças, sejam elas verdadeiras ou não, isso não importa. Multiplica-se a fé em uma vida melhor. Se o fizerem por merecer, quem sabe? Mas essa esperança é o que os alimenta, que os leva a trilhar o dia a dia da desesperança, nas ruas poeirentas da realidade. A fé é uma promessa de um sonho não vivido, de uma vida negada. A esperança que se dissolve e escorre em lágrimas pelo rosto de P., deixando seus olhos vazios e delirantes, suplicando ajuda. Suplicando talvez pelo sonho que não sonha mais, suplicando talvez pela vida que não vive mais.