Estava terminando de fazer um dos milhares de relatórios que temos que preencher no fim de cada mês, quando Leci, nossa técnica de enfernagem, aproximando-se de mim, falou:
_ A dona C. está aí e quer falar com você.
Levantei-me e lá estava C., uma senhora de aproximadamente 45 anos de idade que tinha, há alguns anos, sido esfaqueada pelo vizinho por causa de uma briga sem importância. Continuavam donos de casas vizinhas, mesmo depois de seu mais de um mês de internação por causa da perfuração de vários órgãos. Talvez a prisão em que ele se encontrava no momento tenha aliviado um pouco o clima. "Será que ocorreu mais um problema com a vizinhança?", pensei. Mas apresentou-me outro, de natureza diferente: abuso sexual. Seu genro abusou da própria filha, de 3 anos, e já tinha antecedentes de ter feito o mesmo com o filho há alguns anos, antes de morar no bairro. Lembro que na época C. me relatou que andou com essa criança em várias delegacias e no IML e não resultou em nada. A filha de C. mudou-se para a casa dela há alguns meses, até conseguir alugar uma casa. Havia ido na Unidade poucas vezes e,nessas ocasiões, me chamado a atenção não apenas pela asma crônica e o uso abusivo de medicamentos , mas pelo seu jeito descuidado. Era obesa, vestia-se com desleixo e o cabelo desgrenhado se rebelava contra sua tentativa de prendê-lo. E era triste, profundamente triste. Após C. me relatar o ocorrido, eu disse que gostaria de conversar com sua filha antes de tomar qualquer atitude. No dia seguinte, estavam todos lá: C., sua filha e os netos. Segundo o relato da filha de C., os abusos aconteciam na sua ausência, mas começou a desconfiar por causa do estranho clima na relação de seu marido com as crianças. Os vizinhos e a próprias crianças confirmaram suas suspeitas. Diante disso, liguei para o Conselho Tutelar e coloquei-a na linha para falar com o conselheiro. Marcaram um encontro para o dia seguinte. Passaram-se alguns dias e não tive notícias da família. Um dia, C. reapareceu na Unidade e, revoltada, disse que sua filha e seus netos estavam hospedados numa casa de retaguarda, enquanto seu genro aguardava o julgamento em liberdade, em casa.
_Vê como é, doutora? Eles, que são vítimas, é que estão presos e outro está aí, livre, feliz e, ainda, dentro da nossa casa. Eu não acredito mais em justiça.
Meses se passaram quando Ester, uma das agentes de saúde, me falou que a filha de C. estava morando na sua área e com o marido. Não acreditei. Fiquei revoltada.
Dias depois, vi-a entrando pelo portão da Unidade. A vontade que tive foi de expulsá-la, porque na minha cabeça era inconcebível que alguém perdoasse e voltasse a viver com um homem que colocava seus filhos em risco. Mas me contive ao olhá-la mais detalhadamente. Seu corpo pesado, seu cabelo desgrenhado , seus passos lentos e seus olhos tristes, que insistiam em olhar para o chão. Só por alguns segundos me encarou , mas nesse rápido encontro dos olhos percebi que sabia o que eu pensava, sabia o peso de sua decisão e por isso não conseguia erguer a cabeça e me encarar demoradamente . Ela estava ali, porque não tinha a quem recorrer para tratar de sua asma. Estava ali sozinha e humilhada na sua dor, com seu peito cansado e seus olhos vazios. Percebi que não tinha direito de julgá-la, não era meu papel. Ali eu era a médica e ela precisava de ajuda. Engoli em seco e fui encontrá-la. Não perguntei nada, tampouco ela me falou qualquer coisa.Não precisava. Seus olhos fixos no chão e seus ombros arqueados pelo peso da doença e do sofrimento falavam por si. Ela bem que tentou reagir, mas não conseguiu. Como reagir num país que não pune os culpados, nem protege as vítimas?
E ei-la de volta em sua vidinha triste, em sua doença que não é do corpo e sim da alma, tendo que enfrentar o olhar e a crítica das pessoas. Não sei se agi certo, mas naquele momento a acolhi. Depois tomei outras providências, mas naquele momento a acolhi. Quando o Conselho Tutelar, alertado por nós, foi a casa dela, não mais a encontrou, a casa estava vazia. Vazia como sua vida, vazia como seu peito.