segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A HISTÓRIA DE M.

Idoso, negro e magro, Seu M. morava lá no bairro há muitos anos. Era viúvo e tinha uma família grande, repleta de filhos e netos, muitos deles morando também lá no bairro. Já fora vítima de patologias como hanseníase e tuberculose, além de ser hipertenso. Gostava muito de andar e o fazia quase sempre sozinho, descendo e subindo a rua com um bastão, ora para lhe dar sustentação, ora para afastar pessoas indesejáveis, não titubeava em bater em quem vinha lhe incomodar, nessas ocasiões o mínimo que fazia era quebrar um pertence do sujeito, como vidro de carro e bicicletas.

Em época de campanha de vacinação, costumamos vacinar em casa os idosos acamados, os cadeirantes, os que por algum motivo não podem ir à Unidade e, numa tentativa de convencê-los, os que se recusam a tomar vacina, figurando nesse último grupo Seu M. A técnica de enfermagem do Posto, Tonha, foi encarregada na última vez de ir até a casa de Seu M. para explicar-lhe a importância da vacina e da gravidade da gripe em pessoas idosas, sendo expulsa sob a ameaça do famoso bastão. Trouxe-nos a resposta dele:

_ Não vou tomar essa porcaria de vacina, porque foi o presidente Fernando Henrique que mandou dar pra matar os velhos pra ele não precisar pagar aposentadoria.

Rimos muito, mas ele e outros não tomaram a vacina com medo de estar envenenada.


Era muito engraçado também, além de ser um problema, quando Seu M. ia até o Posto para pegar seu remédio para hipertensão: como os fornecedores dos medicamentos adquiridos pela Prefeitura não eram sempre os mesmos, a embalagem do remédio variava e Seu M. só o tomava quando vinha na prateada. Em outra cor qualquer ou transparente, não havia quem o fizesse levar o medicamento, ele devolvia e ainda ficava bravo.

O jeito era guardar, exclusivamente para ele, em estoque os remédios de embalagem prateada para que quando outra embalagem viesse tivéssemos uma reserva. Ou trocávamos com outros pacientes e outras Unidades.

Fora essas "paranóias", Seu M. era uma pessoa alegre, que gostava de tocar e cantar e, apesar de ter mais de setenta anos, ficava muito feliz quando tinha oportunidade de mostrar seu trabalho. Ele sempre dizia que tinha uma banda, mas que os componentes dela se resumiam a ele mesmo: compunha, cantava e tocava, além disso, inventou um equipamento que seu neto transportava num carrinho de mão quando tinha alguma apresentação. Sanfona nas mãos e pés nos bumbos do equipamento inventado faziam da "banda Nó Cego" uma experiência interessante e pitoresca.

Um dia chegou na Unidade numa alegria só para me contar que tinha gravado um CD independente, na gravadora de um amigo, e queria me presentear com o primeiro disco, porque, segundo ele, só assim conseguiria vender os demais. Senti-me feliz e um pouco emocionada, agradeci o presente e parabenizei-o pela conquista. Meus alunos de medicina compraram o CD e ele ficou radiante.

Nos últimos tempos cheguei a ficar meses sem vê-lo, soube apenas que estava passando muito tempo na casa dos outros filhos, em outros bairros. Chegou-me então a notícia de sua morte. Fiquei muito triste de não ter podido me despedir.

Lá se foi, com seu bastão, sua irreverência e coragem de viver. Deixou apenas, silenciosa, no canto da casa, a "banda" que sempre o acompanhava com orgulho. Sumiu da minha vista, sumiu da minha vida, mas permanece para sempre, personagem vivo,pintado com amor, num dos quadros pendurados na minha vasta parede da memória.

sábado, 10 de outubro de 2009

MEMÓRIAS

No Posto de Saúde de Cascalheira, uma das atendentes de enfermagem chega até mim e comenta que na noite anterior uma mulher do "cabaré" tinha levado uma surra de um peão. E emenda que ouviu isso quando uma das amigas da mulher contava para o dono da farmácia. Perguntei o porquê da mulher machucada não ter ido até mim, no posto, para que eu cuidasse dos ferimentos. Ao que a atendente, deixando-me intrigada, respondeu que elas não freqüentavam o Posto porque ele era do povo e o povo não ia gostar de encontrá-las aqui.


Chamavam em Cascalheira de "rua do cabaré" o local onde ficavam as casas de prostituição, que consistiam em seis ou sete casas, afastadas da cidade, governadas por um homem ou uma mulher: os "donos" das meninas.


Elas saiam pouco, preferiam mandar os empregados à cidade. Quando decidiam sair, no entanto, chamavam a atenção pelas roupas extravagantes, constratando com a roupa simples e as chinelas das mulheres do lugar, e porque tinham dinheiro e gostavam de gastá-lo. Assim, enquanto os moradores olhavam-nas com um misto de desconfiança e indignação, os comerciantes as tratavam com toda a deferência com que se trata os bons clientes.


Era interessante como as mulheres de Cascalheira enxergavam as meninas. Enquanto moravam e trabalhavam na "rua dos cabarés", eram ignoradas e desprezadas, atitudes justificadas pela moral cristã, apesar da igreja de lá não compartilhar desse pensamento, pelo ciúmes que sentiam de seus homens e, grande parte, pela inveja da juventude, da beleza e do dinheiro delas. Todavia, se alguma se casava e ia morar com o companheiro na cidade, deixando "a vida" e assumindo uma relação séria, passava imediatamente a ser aceita por todas.


Voltando ao ponto de partida da história, a moça que tinha sido agredida, resolvi que ia até sua casa avaliar a gravidade de seu estado. Luizinho, atendente de enfermagem, achou imprudente minha decisão, uma vez que estava há pouco tempo na cidade, ainda sob aceitação, e uma atitude dessa podia interferir no processo. Reuni, então, a Comissão de Saúde, composta por lideranças locais, a fim de expor a situação e, surpreendentemente, minha decisão foi apoiada por unanimidade.


Munida de instrumentos médicos e medicamentos, parti para a"rua dos cabarés" com Luizinho. Acatando a recomendação da Comissão, fomos após às três da tarde, porque, além das meninas acordarem após o meio-dia, evitava que encontrássemos ainda algum cliente da casa por lá, o que seria constrangedor.

Chegamos e o silêncio reinava, as casas eram de alvenaria, com cores fortes dispostas lado a lado. Bati de porta em porta procurando a moça agredida, que, enfim, já estava melhor, aproveitando para convidar todas as outras para uma reunião. Quando me reconheciam, olhavam-me com espanto e, muitas vezes, com desprezo.


Foram chegando ao local combinado uma a uma. Vinham bocejando, algumas com os cabelos molhados do banho recente, outras com a maquiagem borrada da véspera. Acomodando-se, umas curiosas, umas desafiadoras, começaram, a fim de me testar, a me deixar constrangida, conversando sobre os acontecimentos da noite anterior, não poupando detalhes picantes e desnecessários.


Ouvi tudo com tranqüilidade. Ao perceberem não haver me intimidado, ficaram mais à vontade e passaram a demonstrar interesse real por tudo que eu falava. A reunião mostrou-se agradável e produtiva, girando em torno de assuntos como DSTs e violência contra a mulher. Ao final, ficou acordado que eu abriria a Unidade uma vez por semana na hora do almoço só para atendê-las e que uma vez por mês viria até elas conversar sobre temas de saúde, propondo, por fim, que fosse eleita uma representante entre elas para fazer parte da Comissão de Saúde. E assim foi feito.


Distraia-me muito nos dias em que iam na Unidade, com sua alegria e irreverência, enchiam de risadas o ambiente. A Comissão de Saúde recebeu sua representante eleita de braços abertos, indo visitá-la, inclusive, quando esteve internada, enchendo-na de orgulho.


Algumas coisas, no entanto, demoravam mais a mudar. Um dia, ao sair do açougue, encontrei uma das meninas e cumprimentei-a, perguntando como estava, ela sacudiu a cabeça num sinal positivo e se afastou rapidamente. No dia seguinte, quando foi à Unidade, disse que eu não precisava cumprimentá-la quando a encontrasse na rua. Rebati dizendo que eu não tinha motivos para sentir vergonha de cumprimentá-la em qualquer lugar que estivesse. Ela sorriu e abaixou a cabeça.


A partir desse dia, pude contar com elas para tudo. Sempre que enfrentamos momentos difíceis, estavam prontas para ajudar.De forma discreta, contribuiam com dinheiro ou trabalho. Quando fui demitida, inclusive, soube que, cheias de indignação, fizeram um abaixo- assinado pedindo a minha volta.


Minha lembrança delas é de meninas-mulheres de riso fácil e malícia, enchendo qualquer ambiente de alegria. Fortes e frágeis, decididas e inseguras, risonhas e tristes. Disfarçando com maquiagem as olheiras de noites mal dormidas e maus tratos sofridos. Fumavam e bebiam e, apesar de atrevidas, respeitavam os limites impostos pela sociedade local. Solitárias e solidárias damas da noite. Aprendi com elas a olhar além da imagem do ser- humano, respeitando sua individualidade e sua história, sem fazer julgamentos precipitados. Aprendi, principalmente, a capacidade de rir da vida.


Eram mulheres sofridas, com vida e sonhos comuns. Queriam ter filhos, marido e uma casinha para chamar de sua. Queriam ir à igreja aos domingos e fazer pamonha na roça. Eram moças como todas as outras, que por algum desencontro ou descaminhos trilharam outras vidas e não souberam mais voltar.

sábado, 5 de setembro de 2009

PÁSSARO (à minha mãe):



Meu coração bate pequenino, mal o sinto no meu peito oco. Mesmo assim percorro o caminho que me cabe. Dia a dia ouço o sofrimento dos outros, e o meu, quem o ouve?

Enquanto caminho, sinto fluir a tua vida rapidamente. Escapas de ti mesma, minhas mãos já não conseguem te prender à realidade da vida, teu corpo leve mal toca no chão quando andas, pareces um pequeno pássaro, na porta entreaberta da gaiola, pronto para partir para a liberdade. Olhas para nós pedindo ajuda, queres partir, mas te falta coragem. Teus olhos antes assustados vão adquirindo a tranqüilidade do inevitável, meus olhos antes tranqüilos são só desespero contido perante o inexorável.

Continuo meu cotidiano, mas não me afasto de ti, pequeno pássaro. Meus pensamentos voam ao teu lado, afago tua cabeça e massageio tuas costas, toco nos teus ombros tão frágeis, canto músicas que gostas de ouvir e sorris serena. Teu quarto, os CDs, os livros de poesia: todos testemunhas caladas da tua vida.

Seguro com ambas as mãos teu corpinho de ave, não te deixo partir. Não agora. Tenho tanta coisa a falar, mas não escutas mais, teu olhar vago e remoto me diz isso. Tua essência me foge das mãos, me olhas de longe, me desconheces. Te seguro firme, sinto teu coração frágil pulsar, te guardo no meu peito oco, enquanto caminho ninguém te vê, ninguém me vê. Carregar-te-ei para sempre dentro do meu peito, mas teu rosto, tua alma já não fazem parte do cotidiano, não te interessas mais pelas coisas mundanas que antes eram tão tuas. Teu olhar me pede ajuda, minhas mãos tremendo se abrem para a eternidade e deixam-te partir.

domingo, 19 de julho de 2009

ESPERANÇA


A igrejinha

Chegou na Unidade falando alto, alegre e independente. Era um senhor de aproximadamente 70 anos com boa estatura e forte, com uns quilos excedentes visíveis na barriga. Natural de Santa Catarina, mas sua última estadia antes de chegar em Cuiabá havia sido Rondônia, de onde veio para ser pastor de uma igreja evangélica. Moravam ele, a esposa e a neta numa casinha simples de madeira, com dois cômodos, construída no terreno nos fundos da igreja. No dia em que apareceu, quando aferimos sua pressão estava bem elevada, expliquei-lhe a necessidade do tratamento e as possíveis complicações caso não o fizesse. Seu P. após dar-me um sorriso balançou a cabeça negativamente e falou: -Não vou tratar não doutora, não precisa, Deus cuida de mim. Argumentei: -Deus tem mais coisa o que fazer, por isso delegou ao homem essa tarefa. Não o convenci. Disse-me que eu não tinha fé bastante para acreditar que Deus o curaria. Despediu-se com um sorriso condescendente. Os meses se passaram e seu P., mesmo frequentando a Unidade com sua esposa, continuava recusando o tratamento. Um dia chegou-me a notícia de que ele havia sofrido um AVC (derrame) durante a noite e havia sido internado. Permaneceu durante aproximadamente 1 mês no hospital, vindo a receber alta com sequelas relevantes. Fui visita-lo assim que voltou pra casa. Deitado, com paralisia de um lado do corpo, transformare-se em homem franzino e dependente. Ao me ver começou a chorar e balbuciar frases desconexas, de impossível entendimento. Tentei acalma-lo dentro de sua fé, mas seus olhos eram só desespero. Não conseguia e nem precisava falar, seus olhos fizeram esse papel. Os meses que se seguiram foram difíceis, pois teve que repetir exames e ir a diversos especialistas e tudo isso dependia de ambulância, cadeira de rodas e acompanhantes e, como nem sempre conseguíamos que chegasse na hora marcada,muitas vezes acabava não sendo atendido. Acontecia de o profissional ainda estar no serviço e se recusar a atendê-lo por causa do atraso, resultando em atritos constantes entre a Unidade e os serviços de Atenção Secundária. Mais tempo se passou e a Igrejinha, agora fechada, não tinha mais fiéis, o pastor, que antes lhes levava conforto através da palavra de Deus, agora estava prisioneiro de seu próprio corpo, deitado numa cama, ali, bem perto.Dessa vez, era ele quem precisava de uma palavra, de um alento, precisava de toda a sua fé. Aos poucos foi ficando mais prisioneiro: seus membros foram atrofiando por causa da falta de fisioterapia, que não pôde fazer pela dificuldade de condução. Conseguimos que a fisoterapeuta fosse algumas vezes em sua casa, mas isso pouco adiantou. Continuava chorando quando eu ia visita-lo, agora pedia para voltar para sua terra, perto de seus parentes. Tentei, através de uma reportagem em um jornal da cidade e cartas para as Secretarias de Promoção Social do Estado e Município, conseguir passagens para ele, a mulher e a neta embarcarem para Santa Catarina, mas nada consegui. Continuou ali, deitado no seu canto, bem tratado pela família, mas infeliz. As lágrimas continuavam escorrendo quando me via, e eu, sem respostas, sem nada para dar-lhe, apenas o conforto de uma voz amiga. Hoje sua Igrejinha voltou a funcionar sob o comando de um novo pastor, com suas bênçãos, e ele teve uma infecção de pele que evolui de forma rápida para uma necrose. Está internado e deverá sofrer uma amputação, provavelmente de parte do pé. Sua esposa não queria interna-lo apelando mais uma vez para Deus, dessa vez fui mais dura e incisiva e consegui demovê-la da ideia de tratá-lo em casa. Passo pela Igrejinha, agora em reforma,entro, e, enquanto os pintores fazem seu serviço, olho para o crucifixo preso à parede e lembro da fé de seu P., a fé que o fazia viver a vida sem enxergá-la, que o fazia encontrar explicações para tudo, mas que agora não consegue dar-lhe paz. Olho para o cruxifico e vejo um Deus tão próximo e tão distante, que exige sacrifícios de quem viver já é um sacrifício, com a promessa de um paraíso, quiçá diferente deste. As Igrejas se multiplicam nos bairros pobres, multiplicam-se porque espalham esperanças, sejam elas verdadeiras ou não, isso não importa. Multiplica-se a fé em uma vida melhor. Se o fizerem por merecer, quem sabe? Mas essa esperança é o que os alimenta, que os leva a trilhar o dia a dia da desesperança, nas ruas poeirentas da realidade. A fé é uma promessa de um sonho não vivido, de uma vida negada. A esperança que se dissolve e escorre em lágrimas pelo rosto de P., deixando seus olhos vazios e delirantes, suplicando ajuda. Suplicando talvez pelo sonho que não sonha mais, suplicando talvez pela vida que não vive mais.

domingo, 14 de junho de 2009

O PARTO


Minha casinha em Cascalheira


As noites de Cascalheira, quando não eram de lua, eram escuras, muito escuras. Dez da noite, o motor a disel, única fonte de energia da cidade, era desligado e restava a escuridão. As luzes bruxuleantes das velas, das lamparinas e dos lampiões a gás iluminavam o interior das casas e lá fora as pessoas recolhiam as cadeiras das portas, onde há pouco conversavam com os vizinhos, contando casos, ás vezes ao som de uma viola, tomando um cafézinho passado na hora. As crianças que ainda brincavam, tal como as cadeiras, também eram recolhidas, as casas se trancavam e, aos poucos, o sons das vozes iam sumindo, iam se apagando junto com as luzes. Eu já havia me habituado a essa rotina. Ficava conversando com os vizinhos ou lendo até o sono chegar, antes da escuridão reinar. Eu dormia cedo, porque não sabia se dormiria a noite toda. Ela era sempre um mistério para mim, escondendo em suas sombras histórias de dor e de alegria. Nas noites sem lua, a vontade era olhar para o céu, onde se acendiam as estrelas disputando entre si um lugar naquele pedaço de firmamento. Eu já havia comprado minha casinha de adobe, num ranchinho, o chão de terra batida, cobertura de palha. Tinha quatro cômodos e o banheiro ficava do lado de fora. Decorei minha casa com artesanatos indígenas e de artesão da região, com redes, esteiras, cestos de palha e baús de couro. No meu quarto, uma cama de casal antiga, de ferro batido, presente de um amigo, e um armário compunham a decoração e duas janelas grandes, uma dando para a rua, a outra para o sol. De manhã, bem cedo, pegava um pouco de café em grão, já torrado, e ia até a casa de Dona Naíde, a vizinha, a fim de moê-lo. Lá não existia padaria e quem quisesse comer pão tinha que fazê-lo e era o que acontecia. Todo mundo fazia pão, menos eu. Contentava-me em esperar as vendedoras, com suas cestinhas repletas de pão quentinho. Ás vezes ganhava também de amigos e vizinhos. Minhas noites eram sempre imprevisíveis: a qualquer momento alguém poderia bater na minha janela para alguma emergência. Nos meus primeiros dias lá, esse chamado era o que eu mais temia. Nas maioria das vezes se tratava de gestantes em trabalho de parto que, acompanhadas por parteiras experientes, me davam o sinal de que alguma coisa não ia bem e esse era meu medo. Lembrava-me sempre do que meu professor de obstetrícia dizia: "A maioria dos partos são normais, mas quando complica é sempre emergência". E sobre o assunto só o tinha visto quando estudante, porque depois de formada fiz residência médica em infectologia e saúde comunitária e fazer um parto em domicílio que podia ser complicado, sabendo que o hospital mais próximo ficava a trezentos quilômetros de distância, e sem ninguém pra me ajudar, a não ser meu conhecimento teórico, alguns instrumentos cirúrgicos básicos que mantinha esterelizados, era de amedrontar qualquer um. No entanto, a certeza de que não havia numa área de aproximadamente trezentos quilômetros ninguém mais preparado que eu para ajudá-las, me encorajava a prosseguir. Lembro-me da primeira vez que isso aconteceu, ainda morava na casa alugada, meu coração disparou. Normalmento era o marido ou o pai que vinham me buscar.Eu acordava rápido, muitas vezes antes mesmo de me chamarem, apenas pelo ruído dos passos. Naquela ocasião, me vesti, peguei meus apetrechos e a lanterna e o acompanhei. Deviam ser duas horas da manhã, a noite envolvia-nos com seus ruídos do silêncio: um galo cantando ao longe, o coachar de um sapo, passos sem dono no cascalho, passos da noite. A casa era pequena, iluminada por velas e, assim como a maioria das casas da região, de adobe coberta com palhas. O quarto não era pequeno, mas se tornava pela quantidade de pessoas que nele circulava, além de cachorros e galinhas que toda hora tinham de ser retirado para, logo em seguida, retornarem. A moça gemia e chorava deitada numa cama baixa, a seus pés, sentada, encontrava-se a parteira, cujas ordens- água pra molhar os lábios da filha, chá de gengibre para acelerar o trabalho de parto- faziam com que a mãe da moça entrasse e saísse a toda hora do quarto. O marido, na cabeceira da cama, sustentando no peito a cabeça da mulher. As vizinhas ajudavam a mãe ou tomavam conta das crianças e os homens ficavam do lado de fora da casa conversando. A luz bruxuleante tornava esse quadro um tanto baço, irreal. Cheguei e fui conversar com a parteira, sentindo os olhares em redor, oscilantes entre a esperança e a desconfiança. Segundo a parteira, o trabalho de parto não avançava há mais de uma hora. Coloquei o pinard para ouvir o coração do neném: forte e ritmico. A dilatação estava quase completa, mas as contrações, realmente, estavam fracas e esparsas. Decidi romper a bolsa para acelerar o trabalho de parto e o fiz assim que aconteceu a contração seguinte. Enquanto isso, a parteira fazia simpatias para ajudar: colocava o chapéu do marido na cabeça da mulher, fazia-o rodear três vezes a casa repetindo uma determinada oração e mais algumas de que não em lembro. Após a ruptura das membranas, as contrações começaram a ficar mais fortes e frequentes e o bebê, enfim, nasceu. Permaneci na casa até o nascimento, mas deixei a parteira conduzir o parto. Após o nascimento, examinei a criança e aspirei as secreções com uma perinha de borracha apropriada e ele chorou alto. A parteira terminava o ritual do trabalho de parto, trocando os lençóis e as roupas da moça para que todos pudessem ver a criança. O pai, a fim de avisar o resto da cidade do nascimento do filho, soltou um foguete com três tiros, se fosse mulher seriam dois apenas. Enquanto uma vizinha preparava um café para todos, voltei para casa. Afirmei que não precisavam me levar, que sabia voltar pra casa sozinha. Grande erro. Apesar da lanterna, a escuridão era total. Só ouvia os latidos e sentia os olhos dos cachorros, brilhando à luz da lanterna. Peguei pedras no chão, ameacei atirar, eles recuaram. Não conseguia encontrar minha casa, passei por ela e não percebi. Comecei a ficar preocupada porque nem sabia mais como retornar à casa do nascimento para pedir ajuda. Finalmente, a calçada de cimento branco ao redor de minha casinha consegui reconhecer. Abri a porta e respirei aliviada e cansada, mas feliz e com a sensação de dever cumprido. Deitei e logo dormi. A noite estava partindo. Ao longe um galo cantava anunciando mais um nascimento, o nascimento do dia.

sábado, 23 de maio de 2009

OUTRA MARIA

Conhecia-a há uns dez anos, Maria dos olhos azuis-água, levando seus filhos, que eram cinco, com freqüência à Unidade para eu consultar. Contradizendo os escandalosos olhos, era um pessoa calada e humilde e seus filhos, apesar da simplicidade das roupas, estavam sempre bem arrumados. Sua casa era pequenina e no meio de um terreno que conservava, assim como a seus filhos, limpo e cuidado.
Numa consulta de rotina, ansiosa e desconfiada, Maria começou a falar coisas que não eram de seu feitio discreto e quando tentei dar continuidade ao assunto, a fim de entendê-la, calou-se encerrando a conversa e a consulta. Poucos dias depois chegou-me a notícia de que ela e sua família haviam se mudado do bairro. Meses se passaram até que recebi a inesperada visita do marido de Maria. Estavam morando numa região rural perto da cidade e viera me procurar porque, segundo ele, a mulher tinha "enlouquecido": falava coisas desconexas, fugia de casa, passando, ás vezes, o dia inteiro desaparecida e deixava os filhos pequenos sozinhos. Ao chegar do trabalho e encontrar esse cenário, saia para procurá-la, dia após dia. Desorientado, não sabia o que fazer e assim resolveu voltar ao bairro para poder cuidar da saúde dela.
Dois ou três dias depois, trouxe-a até mim. Estava mais magra e o cabelo, outrora sempre preso e arrumado, quedava-se despenteado. No consultório, ficou de cócoras no canto da sala e não falava. Aproximei-me dela e a chamei pelo nome, me encarou rapidamente com os olhos azuis estranhos e agitados, estendi minha mão e pedi para que se levantasse e ela obedeceu calada. Não tive dúvidas de que era um surto psicótico e que precisava urgentemente de ajuda, assim como sua família. O marido foi demitido do emprego por causa de suas constantes faltas, cometidas para cuidar dela e dos filhos. Estes, por sua vez, assustados, sentiam falta da mãe e mal tinham o que comer. Encaminhei Maria para tratamento especializado e, até que as coisas se normalizassem, a equipe da Unidade ajudou a família com cestas básicas, roupas e outras coisas que necessitavam.
Iniciou o tratamento e com ele apareceram os efeitos colaterais dos medicamentos e a melhora lenta e gradual. Enquanto isso, seus filhos, crianças entre cinco e dez anos, assumiram a postura de pais enquanto à Maria foi relegado o papel de criança, de filha: davam-lhe os remédios e levavam-na pelas mão até a Unidade para se consultar, além de realizarem todas as tarefas domésticas sem deixar, no entanto, de estudar. O marido voltou a trabalhar e passava o dia todo fora.
Apareceu-me um dia Maria com os filhos e, ao dirigir-se a mim, olhei no azul de seus olhos e reencontrei-a. Tinha voltado e dessa vez era ela quem trazia os filhos pelas mãos. Voltara a ser mãe e eles, crianças. Dava impressão de ter retornado de uma longa viagem e simplesmente retomado a vida de onde havia deixado. Não sei que lembranças tem desse tempo, nem onde estava durante esse período, mas retornou e impôs a seu outro eu, agitado e confuso, o silêncio, assumindo seu lugar de mãe, de mulher, forte e serena como sempre fora. No olhar azul celeste, lampejos de insanidade.

terça-feira, 21 de abril de 2009

MENINOS

Hoje mais um jovem se foi. Para a maioria das pessoas que leram o jornal essa manhã, mais um no meio de tantos.Tantos Joãos, tantos Josés...
Alguns ainda arriscam, em vez de um "mais um", um "menos um, bandido tem mesmo é que morrer".
Vê-lo cair, abatido como um animal, ou pior que um animal, deixa claro meus limites. Seus olhos sem olhares, vazios de alma, não são únicos. São velhas as histórias que se repetem: pais trabalhando, filhos desassistidos e aí o chamado irresistível das ruas, das drogas, da morte. Ano após ano, o mesmo enredo sangrento com fim trágico. E mesmo assim assistimos calados, como crianças que ouvem uma estória de terror e dormem assustadas até o dia em que, de tanto ouvi-la, não mais assustadas, apenas dormem.
Lembro-me do seu rosto na última conversa que tivemos. O ruído do riso permanece nos meus ouvidos. Agora, carrego mais uma morte. São tantas. São tantos os rostos que me sorriem meninos, tantos os rostos. Os políticos discutem sobre a próxima copa do mundo e os meninos morrem. As pessoas se revoltam por uma fatalidade em específico e, na periferia, os meninos morrem todos os dias. Ninguém se comove, ninguém se indigna. Foram crianças como os nossos filhos, como os nossos netos, que iam à escola e gostavam de jogar bola e soltar pipa, apenas trilharam caminhos diversos: os caminhos que lhes pareciam mais promissores, que lhes permitiam experimentar a falsa sensação de poder e liberdade emprestada pela droga. Sentiam-se fortes e poderosos, achavam que eram o que não eram e o que nunca seriam. Só eram meninos que se perderam no meio do caminho da vida. Vejo-os nascerem, crescerem e tento alertá-los, mas a minha voz é fraca e meu discurso distante e solitário, o dia a dia nos becos do mundo lhes oferece respostas mais rápidas para sua necessidades. As ações do Estado não conseguem penetrar nas ruelas escuras do bairro, não transformam seu cotidiano, apenas matam a fome e sufocam a dignidade.
Os caixões de papelão saem das casas humildes e as mães choram por seus meninos. Só elas choram. Fossem o que fossem, fizessem o que fizessem, meninos perdidos, meninos drogados, sim, mas apenas meninos.

sábado, 18 de abril de 2009

ADAPTAÇÃO

Indo fazer um parto domiciliar


Assim que cheguei a Ribeirão Cascalheira, levaram-me à Casa dos Padres, morada dos sacerdotes, freiras, incluindo Bia (a enfemeira que serviu de ponte entre mim e a nova vida), e agentes da pastoral. Encantei-me com a casa de adobe, coberta por palha, como a maioria das casas da região, e muito acolhedora. Receberam-me muito bem e lá passei a minha primeira semana, enquanto esperava uma casa onde pudesse morar. O primeiro choque de realidade aconteceu quando, no banheiro, deparei-me com um buraco no chão em lugar de vaso sanitário. No momento primeiro me recusei a utilizá-lo, até que não tive outra saída. Era o início de uma série de conflitos pessoais por quais eu passaria.
Mínima, a cidade acompanhava o trajeto da Br 158, que era sua avenida principal, responsável por cortar a cidade de fora a fora. Havia pequenos comércios, uma escola municipal, uma delegacia e um posto de saúde estadual, onde, afinal, eu iria trabalhar. A luz elétrica de toda a cidade provinha de um motor a diesel que volta e meia dava problema e que funcionava apenas no limitado horário das aulas noturnas, das 19h às 23h: quatro horas por dia. Não havia correio, nem telefone. Água encanada, então, nem pensar. A água utilizada tinha origem em cisternas, existentes em todas as casas, que não eram em sua maioria imunes à seca.
Durante essa primeira semana, Bia me levou para conhecer as lideranças da cidade e o posto de saúde. Pequeno e abandonado pelas autoridades, a unidade contava com móveis e equipamentos, em sua maior parte, doados pela população ou pela igreja. Não havia enfermeiros, tampouco auxiliares de enfermagem, apenas três joves contratados pela SES como agentes de limpeza, mas que estavam sendo treinados por Bia para desempenharem também a função delegada, naquela época, aos atendentes de enfermagem. Treinamento esse que continuei. Mais tarde frequentariam o curso oferecido pela Secretária de Saúde para terem o título por direito.
Passada a primeira semana e as primeiras impressões, mudei-me. De alvenaria e quatro cômodos, minha casa era uma das melhores da região e tinha por vizinha da frente a república dos professores, a maioria deles vindos de Belo Horizonte, através de contatos com a Prelazia, para lecionar no período noturno da escola.
Em meu primeiro dia de trabalho, toda a cidade apareceu no posto para se 'consultar' comigo na ânsia de conhecer a nova médica. Trabalhei o dia inteiro, só parando para almoçar na casa de um morador. No fim da tarde, louca para tomar um banho e descansar, me deparei com o problema de não ter comprado corda, nem balde, além de não ter mandado 'esgotar' a cisterna, de forma que a água encontrava-se suja e, assim, imprópria para uso. Ninguém tinha me avisado da necessidade de se providenciar essas coisas. As únicas pessoas com quem tinha intimidade eram a Bia e o pessoal da igreja, mas a casa deles era longe e já estava escurecendo. Desanimada e sem saber o que fazer, entrei em casa e encontrei um problema infinitamente maior na parede: uma aranha enorme, que provoca em mim uma quase fobia. Com o coração acelerado, corri para o quarto e tranquei a porta. Foi a primera vez em que senti vontade de chorar, com saudade do meu quarto, do conforto da minha cama, do chuveiro elétrico, detalhes que antes atuavam desapercebidos em minha vida e que agora me faziam tanta falta. Como trilha sonora desse singular momento, as vozes dos profressores, acompanhada do violão, se avizinhavam. Sabendo que as aulas ainda não tinham começado, resolvi ir até lá pedir ajuda. Receberam-me muito bem, convidando-me a sentar, e logo estava cantando com eles. Quando me senti mais à vontade, contei-lhes os problemas e eles prontamente me ofereceram o banheiro para que eu tomasse banho e uma rede pra dormir, longe da aranha. Propuseram-se também a procurar a aranha no dia seguinte. Aceitei sem pestanejar. Dormi um sono profundo de satisfação.

ADAPTAÇÃO- PARTE II


Eu conversando com paciente
na U.S de Cascalheira



Saindo de cena os problemas de natureza doméstica, passei a enfrentar os relacionados ao trabalho, além dos estruturais, que iam da falta de água e luz à falta de equipamentos. No primeiro mês fui acordada sistematicamente de duas a três noites por semana para atender casos que, em sua maioria, não eram de qualquer urgência. E para isso também fui tirada muitas vezes da mesa do almoço. Dores de cabeça, gripe, coceira no corpo e outras coisas rotineiras constituiam quase a totalidade dos chamados em horas impróprias, que aconteciam por comodidade ou por não terem claro qual era o meu papel ali. Cansei-me e lembrei vividamente do conselho me dado por Bia antes de ir embora: "Coloque limites e horários de atendimento para que o povo deixe você descansar. Se não o fizer, vai desistir."
Segui o conselho e passei a atender fora do horário só o que era realmente urgente. Essa atitude, claro, teve reações: a população começou a reclamar para o pessoal da Prelazia, que julgavam responsável por minha vinda. No contexto em que nos encontrávamos, fim da ditadura militar, nos trabalhos populares, principalmente os realizados pela igreja católica através das pastorais, prevalecia a opinião popular, mesmo quando injusta, como uma espécie de retratação pelos vinte anos de silêncio que a Ditadura conferiu ao povo. Era natural que isso acontecesse, na ânsia de contrapor o regime militar, processo que mais tarde amadureceu. Por achar uma prática muito paternalista, discordava dela e não abri mão do que eu considerava justo.
De passagem pela cidade, o bispo Pedro casaldáliga veio conversar comigo e em certa altura disse:



_Você tem que ter paciência com o povo.
Ao que revidei:


_Não, bispo, o povo é que tem que ter paciência comigo. Quem deixou o conforto de casa, a família e os amigos fui eu.
Com a sabedoria que lhe é peculiar, olhou-me e balançou a cabeça concordando.
Dei-me um tempo de seis meses para que as pessoas se adaptassem a mim e eu a elas. Se ao fim desse período essa relação fosse impossível, eu admitiria meu erro, mas iria embora. Não saberia trabalhar da forma que eles queriam. Contei minha decisão ao padre que mais se fez meu amigo. Enfim, após os seis meses, as pessoas só me procuravam em noites de emergência, respeitavam meu horário de almoço e participaram comigo da criação de uma Comissão de Saúde( equivaleria hoje a um Conselho Gestor) superatuante, que me ajudava a resolver os problemas da Unidade, e do primeiro curso para Parteiras Leigas, com apoio da SES.
Fiquei e finquei minhas raízes naquele solo pedregoso e vermelho. Aos poucos, assimilei o jeito de viver daquele povo, o "Siá" que usavam para dirigir-se a mulheres. Compreendi as lavadeiras indo labutar no córrego e voltando nos fins de tarde com a trouxa na cabeça e os filhos nas mãos. Tomei parte do forró de sábado na casa do Satú, da luta violenta que se travava pela terra, do amor das parteiras que faziam seu trabalho sem cobrar nada por ele, das serestas noturnas à porta das casas. Aprendi a admirar o trabalho da Prelazia e reconhecer que existiam realmente religiosos que fizeram opção pelo lado mais fraco, vivendo de forma humilde tal como o povo.
Esse trecho da minha vida foi uma experiência intensa e bela. Faz parte da minha história, ajudou na minha construção como ser-humano, ponteou a minha personalidade. Anda comigo e se faz presente em cada decisão que tomo. Carrego, hoje e sempre, a terra vermelha que manchou meus pés, porque também marcou minha alma.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

FORASTEIRO

Iniciastes agora esse caminho forasteiro e já te arvoras dono da estrada, senhor dos viajantes. Enquanto lutavas outras batalhas, já estávamos com a enxada nas mãos abrindo esta estrada, outrora apenas uma trilha. Se olhares de perto a terra que pisas e que dizes conhecer, verás nela gotas de suor e pedaços de esperança, que foram ficando em cada trecho, cada curva, marcas dos que a construiram. Fala baixo, não grites e desce desse palanque que subistes. Estou longe, muito longe, de ti e de onde estou te enxergo pequenino e não te entendo. Chega mais próximo se queres conversar. Se te calasses poderias ouvir as vozes dos que já percorreram esse caminho e conhecem seus segredos e suas ciladas, mas insistes em ouvir-te apenas ou o murmurinho daqueles que te rodeiam. Se queres segui-lo, põe o pé no chão e caminha, passo a passo, que ele é de todos, mas respeite a sua história e a daqueles que o construiram, pois suas veredas se misturam e suas vidas são feitas da mesma matéria. Se desistires porque são muitos os percalços, como tantos o fizeram, não me surpreenderás, continuarei. Olho-te ao longe. No meu ouvido, ecos dos teus gritos. Continuo sem tua ajuda, continuo apesar de ti. A estrada é infinita e infinito é meu destino. Quero apenas respeito.

segunda-feira, 30 de março de 2009

A HISTÓRIA DE C.

Dona C. vinha sempre à Unidade. Era, em tal época, uma senhora com menos de 60 anos, obesa e só, muito só. Seu marido a abandonara e aos filhos, que são vários e, em suas palavras, "espalhados nesse mundão de Deus", há mais de quinze anos. Dos paradeiros, só tinha certeza do de uma filha, que mora na cidade, mas em outro bairro. Dos outros não sabia: há muitos anos que nenhum deles vinha visitá-la. Nem para tomar conhecimento de seu estado de saúde, bastante delicado por causa da hanseníase passada e pela hipertensão, obesidade e artrose, nem para saber como (e se) conseguia sobreviver com seu analfabetismo, sua impossibilidade de trabalhar e a falta de idade, a física incompatível com a cronológica, que a permitisse se aposentar. Morava num barraquinho de madeira de uma só peça e se alimentava graças às cestas básicas doadas ora pela Unidade, ora por sua igreja. Vivia a penúria.
Vizinho da frente, o Sr. M., também sozinho, morando em condições tão precárias quanto C., sem aposentadoria e sofrendo algumas mesmas patologias dela, sobrevivia das cestas básicas que a vizinha ganhava, o mesmo ocorrendo quando quem recebia era ele. Além disso, um cuidava do outro e quando estavam doente, o que estava melhor avisava naUnidade que o outro precisava de socorro.

_ Por que a senhora não casa logo com seu M.?

Perguntávamos sempre a ela. Ao que ela respondia, a fim de encerrar o assunto:

_ Não posso. Ainda sou casada.

Sim, ela permanecia fiel, apesar do marido não dar sinal de vida.

Quando completou 60 anos, finalmente, recebeu a notícia do falecimento do marido junto com o atestado de óbito e o direito de receber uma pensão. Ficou feliz e a raiz dessa felicidade era a ajuda que o marido, ao menos depois de morto, tinha deixado pra ela. Não demorou muito, apareceu-me na Unidade acompanhada de um mulato alto e magro de ar debochado:

_ Olha, trouxe a minha mãe pra consultar, porque ela não está passando bem. Tem problema de fígado.

Olhei para o rapaz, que, prontamente, devolveu meu olhar. Parecia fazer pouco de todos, manipulando na boca um palito de dentes e sua presença me irritou, porque eu já sabia o motivo da visita após tantos anos de silêncio.

Respondi com rispidez:

_ Acho que conheço as doenças da sua mãe melhor que você. Há cinco anos trato dela. Onde esteve durante esse tempo?

Antes que pudesse esboçar uma resposta, Dona C. interveio em sua defesa:

_ É meu filho, doutora. Veio com a família passar um tempo comigo, porque está desempregado.

Minha vontade foi retrucar perguntando o porquê de ele não tê-la visitado quando estava empregado e ela passando fome, mas resolvi matar a pergunta na garganta. Não ia adiantar. Ela era mãe, sempre iria defender o filho. A felicidade de tê-lo por perto era infinitamente maior que qualquer dinheiro. Depois de algum tempo, o filho foi embora com a família e nunca mais deu notícias. Tonha Mara, uma das técnicas de enfermagem, disse:

_ Agora já pode casar!

Disse sim, mesmo sem responder com palavras e acatou a idéia.

Por essa época, o barraquinho de madeira transformara-se em uma casinha pequenina de tijolos, construída por vizinhos e fiéis da igreja. Assim, resolvemos fazer um chá de panela para o casal.
Fizemos um lanche na Unidade e cada um de nós levou um presente. Pratos, talheres, panelas e outros utensílios domésticos que julgamos mais importantes. Foi uma festa animada, eternizada em fotografias. Depois, os dois se foram empurrando um carrinho de mão cheio de presentes.
O casamento se concretizou no fim de semana seguinte, presente da comunidade da igreja, a quem devolveram em forma da alegria de permanecerem, mesmo em frente a tantas dificuldades, unidos até hoje. Andam sempre juntos: ela na frente, ele logo atrás. Os filhos continuam ausentes, mas ela se acostumou a fingir que não se importa. Vêm sempre na Unidade. Nunca respeitam dia marcado ou horário de consulta, simplesmente chegam, consultam-se, recebem seu medicamento, conversam um pouquinho e partem. Tranquilos e satisfeitos, porque vivem, comem, têm um teto que não desaba por causa da chuva, porque têm um ao outro. Seguem a vida por insistência, coragem e solidariedade dos que têm tão pouco quanto eles. Seguem-na por respeito, sina, desafio, amor, mas sem lamento,apenas com dignidade.

sexta-feira, 20 de março de 2009

MIGRANTE

Transito diariamente entre dois mundos, eles se tocam, arranham-se,relacionam-se, mas não se misturam. Convivem lado a lado, como fotografias estáticas da realidade,olham-se com olhos da imaginação até onde é permitido olhar, mas não se vêem. Poucos têm acesso à pequena passagem que permite adentrá-los, entendê-los. Em cada um deles exerço um papel diferente. Em um sou mãe, dona de casa , filha, amiga, aluna. No outro, médica, professora, advogada, psicóloga. Nasci em um deles e o outro escolhi para viver. Um é meu abrigo, meu refúgio, meu silêncio.O outro, meu campo de batalha, minha luta, meu ideal, embora nem sempre esses papéis fiquem assim claramente definidos no meu dia a dia. Sou migrante em ambos e, ás vezes, sinto que não pertenço a nenhum. Viajante, forasteira da minha vida, carrego na bagagem lembranças de todos os mundos que vivi. Sou formada de retalhos , vivências de idas e vindas. Tiro da bagagem sentimentos antigos, mofados pelo tempo, e tento revivê-los numa realidade emergente que ignora velhos conceitos e que se impõe buscando novas definições ainda inexistentes.
São cinco horas da tarde, hora de partir. Pego o ônibus e vagueio no limite entre os dois mundos. No trajeto vão ficando rastros de uma outra vida. Olho para minhas mãos pequenas e frágeis, conheço cada marca, cada sulco. Chego em casa, abro a porta e limpo os pés no tapete, retiro os vestígios de uma realidade agora distante. Entro despida, sem resíduos, apenas as marcas no rosto e o cansaço de lutas travadas, de lutas perdidas. Nos olhos, migalhas de sonhos.

domingo, 15 de março de 2009

A HISTÓRIA DE E.

Rua do bairro Novo Paraíso


A primeira vez que vi E. foi na Unidade de Saúde, trazido pela mãe. Esta já havia me falado que ele estava enfraquecido, quase não conseguia andar e tossia muito. Realmente estava com os olhos fundos e o corpo magro e fraco pela doença que o consumia, a tosse era constante. Rapaz franzino, era dono d'uns olhos assustados, que pareciam muito grandes, emprestados, para o rosto fino. Tinha todos os sintomas de tuberculose. Depois de confirmada a doença, E. começou o tratamento. No início, recebia-o em casa através da agente de saúde, posteriormente, já mais forte, ia diariamente na unidade tomar os medicamentos, até se recuperar completamente.
E. possuia, além da mãe, dona C., hipertensa e com crises de histeria diante de algum aborrecimento(e eram muitos), dois irmãos: o mais novo, na época com aproximadamente quatorze anos, já havia tratado de hanseníase e uma irmã que, junto com o namorado, era usuária de droga , já tendo sido encaminhada para tratamento. E era casado. Sua mulher fez o pré-natal de todos os quatro filhos, um perdido antes de nascer, na Unidade.

E. trabalhava esporadicamente em bicos, mas seu sustento maior provinha da "boca de fumo" que tocava.

Alguns anos depois desse primeiro contato, numa segunda feira, quando cheguei ao Posto, fui informada de que E. havia sido baleado, enquanto caminhava, por uma espingarda "doze". Socorrido a tempo, ficou internado no Pronto Socorro, onde ficou em recuperação, lenta, por causa da gravidade do ferimento. Assim que recebeu alta do hospital, foi à Unidade fazer curativos. Nessa ocasião, alertei-o:



_ Preste atenção, E., por duas vezes você quase morreu. Está dado o alerta. Você tem mulher e filhos para criar. Olhe o que vai fazer da sua vida.



_ Eu sei, doutora. Tô pensando em mudar para outro lugar e começar uma nova vida.



Ali, vi que não era mais o rapaz magro, cujos olhos não lhe pertenciam, e inseguro de antes. Era um homem. Um bom pai, um bom filho(Quando a mãe adoecia, não media esforços, entre consultas com especialistas e medicamentos). Chegava ao Posto de forma humilde, tratava com respeito os funcionários, todos gostavam dele. Ouvia-me calado, de forma respeitosa, com a cabeça baixa. Aos poucos foi melhorando e, não precisando mais da visita frequente, sumiu.

Sua família continuou indo regularmente à Unidade, mas ele nunca mais apareceu.

Ano passado fiquei sabendo que ele foi preso. O cunhado, que tinha ficado responsável pela "boca", também foi preso, poucos dias depois. Segundo os moradores do bairro, sua mulher e sua irmã é que deram continuidade ao negócio. Nesse contexto, Dona C., a mãe de E., teve uma de suas crises, inconformada com a prisão do filho, de acordo com ela, uma injustiça. Lembrei-lhe que E. já era um homem, portanto, consciente de seus atos. Emendei entregando-a a esperança de que, estando no Brasil, não demoraria a ser solto. E foi o que aconteceu.

N., a esposa de E., disse-me que ele está trabalhando agora. Não sei se aguentará por muito tempo trabalhar de sol a sol, em serviço pesado, para ganhar um salário mínimo. O sistema em que vivemos não ajuda na recuperação de ninguém. Olho seus filhos brincando na porta de casa com outras crianças e prevejo seus futuros. Que chance eles têm de trilhar caminhos diversos do caminho de seu pai? A realidade que vivem é essa e ela é o seu paramêtro de normalidade.

Ruas esburacadas, sem asfalto, casas pobres, bares cheios, porque dentro deles existe o único lazer que se encontra por aqui: a bebida. De fácil acesso, barata, ela funciona como um remédio fácil para as dores da alma, geradora de violência e morte.

Para as crianças, chapinhar na lama e brincar de polícia e bandido são as fontes de prazer. Agora, que ainda estão aqui brincando na porta de casa, a polícia é encarada com respeito. Respeito que mais tarde se transformará em raiva e revolta, porque crescerão vendo seus pais, irmãos e vizinhos sendo agredidos e presos. Nunca entenderão porque isso só acontece a eles. Hoje, jamais ouviram falar de injustiça social. Cumprimentam-me e me abraçam quando ando pelas ruas. Eu os conheço desde antes de olharem o mundo pela primeira vez. Detenho-me em seus rostinhos alegres e sujos, seus olhos cheios de sonhos, comuns a todas as crianças. Mesmo E., um dia, já partilhou deles. Com o tempo, os sonhos se transformarão em pó e acabarão misturados com o pó das ruas, depositados nas esquinas enlameadas dessa vida que não lhes permite existir eternamente. Lá se vão eles rindo, brincando, correndo no pó, sem saber que pisam os sonhos de outras crianças, que hoje já não sonham mais, já nem vivem mais.

domingo, 8 de março de 2009

MULHERES





Elas vão chegando lentamente, no ritmo que o calor de 40° imprime às pessoas. Mas às sete horas da manhã já estão na Unidade, normalmente acompanhando alguém, porque são elas que cuidam do mundo. São meninas risonhas ou idosas caladas. Carregam pelas mãos maridos, pais , sogros e filhos. Estes nos chegam nos ventres volumosos, no colo, nas mãos, e às vezes são tão numerosos que, não tendo onde segurar, se agarram na saia ou nas pernas delas. Elas ficam na fila pra marcar consulta, levam as crianças para vacinar, vão conversar comigo pra ver se dou um atestado pro marido ou filho, que faltou ontem o serviço, enquanto seus companheiros ficam sentados batendo papo. São elas que marcam e comparecem à consulta com os maridos e também, muitas vezes, falam por eles. E cuidam dos idosos e doentes, levam os filhos à escola e/ou creche. São elas as que mais sofrem com o desemprego, são quem ouve as queixas das crianças, e como são cruéis, quando querem alguma coisa que o salário curto não pode comprar. Transformam-se em negociantes nos comércios afora para conseguir comprar sem dinheiro a comida e sua imprenscindibilidade. São arrumadeiras, cozinheiras, lavadeiras. São crianças a chorar ao serem agredidas, esquecidas. Sim, porque só são lembradas e priorizadas quando estão grávidas e, assim mesmo, não o são por elas, mas pelo filho que carregam. Amamentam, embalam os filhos que muitas vezes,mais tarde, as abandonarão, sozinhas, na sua velhice. Vão visitar maridos e filhos na cadeia, sempre inocentes e injustiçados. Raramente os abandonam, diferente de quando ocorre o contrário, quando não são visitadas e a maioria das vezes acabam abandonadas. Vejo-as indo embora, subindo a rua carregando os seus, são mulheres, são Marias, tão cantadas nas músicas, tão invisíveis na vida real. Vão subindo as ruas no mesmo passo lento com que chegaram, pra que a pressa? A vida pra elas não muda.

_ Para que estudar? Vou ser doméstica mesmo. Disse uma das Marias à Nara, enfermeira da Unidade, quando questionada sobre o porquê de ter parado de estudar.

Vão, aos poucos, afastando-se, sumindo da minha vista, escondendo-se do meu olhar, mas permanecem continuamente comigo. Não como as Marias, para mim têm identidade própria , vida própria, talvez não a que pediram, que elas vão levando com a garra e a coragem que só as mulheres conhecem .Lá se vão, anônimas e invisíveis , carregando o mundo.