sábado, 18 de abril de 2009

ADAPTAÇÃO- PARTE II


Eu conversando com paciente
na U.S de Cascalheira



Saindo de cena os problemas de natureza doméstica, passei a enfrentar os relacionados ao trabalho, além dos estruturais, que iam da falta de água e luz à falta de equipamentos. No primeiro mês fui acordada sistematicamente de duas a três noites por semana para atender casos que, em sua maioria, não eram de qualquer urgência. E para isso também fui tirada muitas vezes da mesa do almoço. Dores de cabeça, gripe, coceira no corpo e outras coisas rotineiras constituiam quase a totalidade dos chamados em horas impróprias, que aconteciam por comodidade ou por não terem claro qual era o meu papel ali. Cansei-me e lembrei vividamente do conselho me dado por Bia antes de ir embora: "Coloque limites e horários de atendimento para que o povo deixe você descansar. Se não o fizer, vai desistir."
Segui o conselho e passei a atender fora do horário só o que era realmente urgente. Essa atitude, claro, teve reações: a população começou a reclamar para o pessoal da Prelazia, que julgavam responsável por minha vinda. No contexto em que nos encontrávamos, fim da ditadura militar, nos trabalhos populares, principalmente os realizados pela igreja católica através das pastorais, prevalecia a opinião popular, mesmo quando injusta, como uma espécie de retratação pelos vinte anos de silêncio que a Ditadura conferiu ao povo. Era natural que isso acontecesse, na ânsia de contrapor o regime militar, processo que mais tarde amadureceu. Por achar uma prática muito paternalista, discordava dela e não abri mão do que eu considerava justo.
De passagem pela cidade, o bispo Pedro casaldáliga veio conversar comigo e em certa altura disse:



_Você tem que ter paciência com o povo.
Ao que revidei:


_Não, bispo, o povo é que tem que ter paciência comigo. Quem deixou o conforto de casa, a família e os amigos fui eu.
Com a sabedoria que lhe é peculiar, olhou-me e balançou a cabeça concordando.
Dei-me um tempo de seis meses para que as pessoas se adaptassem a mim e eu a elas. Se ao fim desse período essa relação fosse impossível, eu admitiria meu erro, mas iria embora. Não saberia trabalhar da forma que eles queriam. Contei minha decisão ao padre que mais se fez meu amigo. Enfim, após os seis meses, as pessoas só me procuravam em noites de emergência, respeitavam meu horário de almoço e participaram comigo da criação de uma Comissão de Saúde( equivaleria hoje a um Conselho Gestor) superatuante, que me ajudava a resolver os problemas da Unidade, e do primeiro curso para Parteiras Leigas, com apoio da SES.
Fiquei e finquei minhas raízes naquele solo pedregoso e vermelho. Aos poucos, assimilei o jeito de viver daquele povo, o "Siá" que usavam para dirigir-se a mulheres. Compreendi as lavadeiras indo labutar no córrego e voltando nos fins de tarde com a trouxa na cabeça e os filhos nas mãos. Tomei parte do forró de sábado na casa do Satú, da luta violenta que se travava pela terra, do amor das parteiras que faziam seu trabalho sem cobrar nada por ele, das serestas noturnas à porta das casas. Aprendi a admirar o trabalho da Prelazia e reconhecer que existiam realmente religiosos que fizeram opção pelo lado mais fraco, vivendo de forma humilde tal como o povo.
Esse trecho da minha vida foi uma experiência intensa e bela. Faz parte da minha história, ajudou na minha construção como ser-humano, ponteou a minha personalidade. Anda comigo e se faz presente em cada decisão que tomo. Carrego, hoje e sempre, a terra vermelha que manchou meus pés, porque também marcou minha alma.

Um comentário:

  1. Apesar de já ter ouvido a história antes, aqui as palavras me emocionaram muito mais!
    Um linda história de um repleto caminho de possibilidades palpáveis, que me impressiona, me anima e faz sonhar...

    um carinho.

    ResponderExcluir