sexta-feira, 19 de março de 2010

Minha história se confunde com a dos meus pacientes, não sei mais se é minha mesmo ou se algum deles me contou e, naquele momento, as nossas vidas se misturaram e pensei ter vivido o que não vivi. Espero, de verdade que não seja minha, seja apenas de uma cabeça confusa de tantas histórias e cansada de tanta vida. Gosto do meu trabalho, de curar doenças e ouvir histórias: algumas tristes, outras engraçadas. Hoje peguei um táxi, voltando da Universidade Federal, onde estudo Ciências Sociais, e quando sentei, o motorista me disse:

_E aí, doutora, tudo bem com a senhora?
_ Tudo bem.
Respondi sem muita certeza de quem era meu interlocutor, afinal só via um perfil. Aparentava mais de cinqüenta anos, magrinho e baixinho. Até que continuou:

_ A senhora se lembra de onde me conhece?

Arrisquei:

_ Lá do Novo Paraíso. Mas o senhor mudou de lá, não foi?

_ Não, doutora, ainda moro por lá. A senhora é nossa médica, atendeu até meu netinho essa semana. A senhora lembra que me encaminhou pra tirar um tumor no braço? Fiquei bonzinho! E sabe os meus meninos que trataram de Hanseníase lá no postinho? Um deles já acabou o tratamento e sarou mesmo.

De repente lembrei de toda a família e da história de cada um e,também, que ele não aparecia há algum tempo na Unidade. Aproveitei para cobrar-lhe uma ida para ver se estava tudo em ordem com a sua saúde. Respondeu-me que estava bem graças a mim e me agradeceu por cuidar da sua família. Chegamos na minha casa, desejei-lhe um bom final de semana e desci. Fiquei pensando na nossa conversa e em como é gratificante ser médica de família. De repente o cansaço passou e veio uma sensação de bem-estar, de dever cumprido. É, acho que ainda tenho que continuar, que ainda sou útil. Desafaço-me das histórias que povoam minha cabeça como quem limpa a poeira de um móvel e elas se dispersam no ar. Podem ser minhas, podem ser de outras vidas, ou de outras pessoas, não importa agora. Somem com o vento. E, por alguns instantes, não tenho mais histórias, sou leve. Sem marcas, sem lembranças, sem passado e sem futuro, apenas sou.

2 comentários:

  1. Adorei, mãe. Você não pode se aposentar NUNCA. FATO.

    Marília

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  2. Coisa mais linda e triste.
    Cada vez que passo aqui tenho a sensação de ter a alma chacoalhada, dessa vez não foi diferente.

    Um beijo.
    saudades.

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