quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Adeus
Hoje, deparei-me de uma forma súbita com sua morte. Doeu, doeu muito, sabê-lo sozinho, deitado no chão, o rosto sem face coberto de moscas. Doeu-me ter consciência das minhas limitações e da indiferença do sistema perante sua morte. Seu sorriso negro apagou-se para sempre. Carregou sua dor e sua história, no caixão barato como sua vida. Seus pertences parcos e sua identidade são testemunhas silenciosas de sua existência, de sua passagem imperceptível pela vida e de sua partida solitária para a morte.
sábado, 13 de novembro de 2010
Visitas domiciliares
Encontrei-o sentado num banquinho em frente ao seu barraco. Sorriu ao me ver: um sorriso negro e sincero. Tinha mais de sessenta anos, antes alto e corpulento, a pele negra e o sorriso fácil. A agente de saúde havia me alertado tê-lo encontrado pela manhã a caminho da Unidade, mas, por estar muito abatido e com falta de ar, aconselhou-o a voltar para casa e me aguardar lá.
Sorria ao me cumprimentar, seus braços, agora finos, pendiam sobre o corpo, o abdômen volumoso e os pés inchados me avisavam sobre a possível doença que o afligia. Perguntei-lhe sobre os medicamentos que usava para hipertensão, respondeu encabulado que os havia suspendido por sua conta.
Cansava-se fácil ao falar. Pedi que fosse ao quarto deitar-se para examiná-lo mais detalhadamente. Levantou-se e me guiou lentamente pelos dois cômodos de seu barraco. Os sinais de abandono e solidão estavam evidentes em cada pedacinho da casa. Deitou-se, não por muito tempo, mas o suficiente para que eu e um dos internos do curso de Medicina que havia me acompanhava o examinássemos.
Sua falta de ar piorava ao deitar-se, mas não precisou mais do que alguns minutos para que confirmasse as minhas suspeitas de que estava realmente com Insuficiência Cardíaca. Seu coração fraquejava após anos intermináveis de trabalho. Não sabia ler nem escrever, não tinha contatos com parentes e os vizinhos mais próximos trabalhavam o dia inteiro. Expliquei-lhe o que estava ocorrendo com seu corpo e como tratar de sua doença. Mais tarde, a Agente de Saúde lhe levaria os remédios e lhe explicaria como usá-los. Deixei-o com um olhar de agradecimento brilhando nos olhos e um sorriso congelado nos lábios tristes. Não pediu nada, não reclamou da vida nem sequer de sua saúde. Era como se isso fizesse parte de seu destino, carregava a vida de forma resignada, da mesma forma como carregava seu corpo, sem questionamentos, sem lamentos.
Segui adiante: meu destino agora era a casa de um velhinho diabético e teimoso, que, com seus oitenta e quatro anos, é dono de um humor irônico que me encanta, não admite que nenhum de seus filhos - e são muitos- se intrometa na sua vida e na sua doença, tem aversão a médicos e hospitais.
Dormia em uma rede atada debaixo de árvores no quintal. Seu corpinho franzino e pequeno, seus cabelos ralos e brancos, suas pernas com cicatrizes antigas, não demonstravam o homenzinho teimoso que ali se escondia. Acordei-o e ele nos cumprimentou alegremente. Perguntei sobre sua saúde e seu tratamento, respondeu de forma calma e decidida que resolveu suspendê-lo, pois já fazia dez anos que tratava e continuava doente do mesmo jeito, e completou com um:"Deus irá me curar". Avisei novamente sobre os riscos que corria ao suspender o tratamento, deu-me uma risada, própria de quem já viveu bastante e conhece a vida:risada que encerra qualquer tipo de argumento. Como haviam acabado as fitas do glicosímetro, não pude verificar sua glicemia para de forma definitiva rebatê-lo. Me encarou com um resto de riso ainda pendente nos lábios de forma triunfante. Disse que voltaria,concordou com os olhos zombeteiros de criança.
Após outras visitas, voltei a Unidade e convoquei a equipe pra me ajudar a solucionar o problema do paciente que não sabia ler e precisaria usar vários medicamentos. Com criatividade e disposição, Tereza, Tonhamara e Marinete logo encontraram uma solução, e Vanusa se propôs a, junto com os fiéis de sua igreja, fazer uma faxina em sua casa, lavar a roupa e ajudá-lo a se organizar melhor.
Dois dias depois, o sr. A estava bem melhor, respirando com mais facilidade e suas pernas começavam a desinchar. Quanto ao seu D., o velinho teimoso, sua gliciemia estava tão elevada que o aparelho não conseguia registrar. Fomos até a casa de sua filha e solicitamos que o levassem ao Pronto Socorro, comprometeu-se a levá-lo no mesmo dia.
Assim, o dia teminou levando a semana com ele. A enfermeira olhou pra mim e suspirou aliviada. Pegamos o jaleco e a bolsa, fechamos a porta do carro e partimos, sem pensar, sem lembrar, deixando apenas as marcas dos pneus nas ruas enlameadas e a certeza da volta.
Sorria ao me cumprimentar, seus braços, agora finos, pendiam sobre o corpo, o abdômen volumoso e os pés inchados me avisavam sobre a possível doença que o afligia. Perguntei-lhe sobre os medicamentos que usava para hipertensão, respondeu encabulado que os havia suspendido por sua conta.
Cansava-se fácil ao falar. Pedi que fosse ao quarto deitar-se para examiná-lo mais detalhadamente. Levantou-se e me guiou lentamente pelos dois cômodos de seu barraco. Os sinais de abandono e solidão estavam evidentes em cada pedacinho da casa. Deitou-se, não por muito tempo, mas o suficiente para que eu e um dos internos do curso de Medicina que havia me acompanhava o examinássemos.
Sua falta de ar piorava ao deitar-se, mas não precisou mais do que alguns minutos para que confirmasse as minhas suspeitas de que estava realmente com Insuficiência Cardíaca. Seu coração fraquejava após anos intermináveis de trabalho. Não sabia ler nem escrever, não tinha contatos com parentes e os vizinhos mais próximos trabalhavam o dia inteiro. Expliquei-lhe o que estava ocorrendo com seu corpo e como tratar de sua doença. Mais tarde, a Agente de Saúde lhe levaria os remédios e lhe explicaria como usá-los. Deixei-o com um olhar de agradecimento brilhando nos olhos e um sorriso congelado nos lábios tristes. Não pediu nada, não reclamou da vida nem sequer de sua saúde. Era como se isso fizesse parte de seu destino, carregava a vida de forma resignada, da mesma forma como carregava seu corpo, sem questionamentos, sem lamentos.
Segui adiante: meu destino agora era a casa de um velhinho diabético e teimoso, que, com seus oitenta e quatro anos, é dono de um humor irônico que me encanta, não admite que nenhum de seus filhos - e são muitos- se intrometa na sua vida e na sua doença, tem aversão a médicos e hospitais.
Dormia em uma rede atada debaixo de árvores no quintal. Seu corpinho franzino e pequeno, seus cabelos ralos e brancos, suas pernas com cicatrizes antigas, não demonstravam o homenzinho teimoso que ali se escondia. Acordei-o e ele nos cumprimentou alegremente. Perguntei sobre sua saúde e seu tratamento, respondeu de forma calma e decidida que resolveu suspendê-lo, pois já fazia dez anos que tratava e continuava doente do mesmo jeito, e completou com um:"Deus irá me curar". Avisei novamente sobre os riscos que corria ao suspender o tratamento, deu-me uma risada, própria de quem já viveu bastante e conhece a vida:risada que encerra qualquer tipo de argumento. Como haviam acabado as fitas do glicosímetro, não pude verificar sua glicemia para de forma definitiva rebatê-lo. Me encarou com um resto de riso ainda pendente nos lábios de forma triunfante. Disse que voltaria,concordou com os olhos zombeteiros de criança.
Após outras visitas, voltei a Unidade e convoquei a equipe pra me ajudar a solucionar o problema do paciente que não sabia ler e precisaria usar vários medicamentos. Com criatividade e disposição, Tereza, Tonhamara e Marinete logo encontraram uma solução, e Vanusa se propôs a, junto com os fiéis de sua igreja, fazer uma faxina em sua casa, lavar a roupa e ajudá-lo a se organizar melhor.
Dois dias depois, o sr. A estava bem melhor, respirando com mais facilidade e suas pernas começavam a desinchar. Quanto ao seu D., o velinho teimoso, sua gliciemia estava tão elevada que o aparelho não conseguia registrar. Fomos até a casa de sua filha e solicitamos que o levassem ao Pronto Socorro, comprometeu-se a levá-lo no mesmo dia.
Assim, o dia teminou levando a semana com ele. A enfermeira olhou pra mim e suspirou aliviada. Pegamos o jaleco e a bolsa, fechamos a porta do carro e partimos, sem pensar, sem lembrar, deixando apenas as marcas dos pneus nas ruas enlameadas e a certeza da volta.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
Revolta
Os dias passam rapidamente me atropelando, não sobrando tempo para pensar, nem para escrever. Os conflitos se multiplicam no bairro, tantos, que acabo sem saber realmente por quem lutar ou contra quem lutar. Às vezes, acho que meu inimigo é o Estado, irresponsável e cego na sua percepção equivocada e superficial dos problemas, às vezes, acho que é a burocracia, fria e estática, como um muro quase intransponível à minha frente, outras, acho que é a falta de vontade de lutar . Suspiro e penso :"será que sou eu o problema? Que já estou cansada e doída de tanto brigar?". Olho à minha volta e lembro da menina, ainda adolescente, que chegou drogada na maternidade para ter o filho prematuro. Aquela que segurava o filho como se fosse uma "coisa", sem vida, sem necessidades. Um dia me ligaram na Unidade para avisar que essa menina ─ mãe-menina ─ drogada e discutindo com o marido, acabou deixando cair a criança, que, com seus dez dias de vida, estava suja e desleixada, igual à mãe. A enfermeira foi ver a situação do bebê, enquanto eu ligava para o Conselho Tutelar. Bem, na casa de uma vizinha, já havia sido alimentada e dormia. No dia seguinte, o Conselho Tutelar foi até lá e levou consigo a criança. O outro filho da menina, um pouco mais velho, mas de apenas dois anos, ficou. Disseram, o Conselho Tutelar, que ele não precisava ir por não sofrer risco de morte. Fiquei sem entender.
Para reaver a criança, deram ordens para que a mãe se tratasse por três meses da dependência química, já que os avós, pais dela, não quiseram se responsabilizar pelo menino.
Como estava drogada na hora que levaram o filhinho, a mãe só foi sentir falta dele no dia seguinte. Aí, chorou, xingou, acusou os vizinhos de chamarem o Conselho, antes de se conformar e, mais calma, se comprometer com o tratamento. Tratamento? Como e onde? A única política pública para o viciado aqui é a cadeia, tratamento esse inevitável, quando o viciado não morre antes.
Eu é que sei de criança que vai até Boca de fumo para comprar droga pra mãe. Vejo gestantes vagueando pelas ruas, quando deveriam estar fazendo o pré-natal, buscando apenas formas de ganhar dinheiro para comprar sua droga. Ouço mães desesperadas me pedindo ajuda para seus filhos, desaparecido nas noites, zumbis, carregando o que conseguem pegar ou roubar para trocar por cocaína. Vejo mulheres que buscam seus parentes sumidos e enfrentam, corajosamente, os traficantes. E permaneço muda, as mãos atadas, sendo um nada.
Minhas palavras de encorajamento e solidariedade soam ridículas diante do sofrimento de mil mães. Sei exatamente o que elas sentem e onde essa busca vai acabar. Nós todas sabemos. Esperam de mim uma resposta, uma saída que eu não posso dar. Por minha vez, quero delas uma coragem e força que não tenho.
Assim, cada uma continua seu caminho e sua luta. Feitas da mesma dor, elas choram lágrimas que meus olhos não conseguem derramar e eu carrego a semente da revolta que elas desconhecem.
Mãe-meninas caminham com suas barrigas grandes e seus meninos nos braços, jovens que conheci ainda crianças . Prisioneiros da liberdade. E sou eu a mera coadjuvante nessa luta de cartas marcadas, onde só existe um vencedor. Ao outro, resta viver. Sem dignidade, sem respeito, sem ideais, apenas sobreviver ao dia a dia. Perdeu sua família, amigos, emprego, perdeu seu orgulho, sua capacidade de amar. Seus olhos vazios, sem sentimentos, sem revolta, sem expressão e sem alma ,refletem o nada.
domingo, 23 de maio de 2010
INQUIETUDE
Dona M. vem adentrando pelo portão da Unidade, é baixa e troncuda, usa o cabelo preso num coque na nuca, tem os lábios finos e crispados e seus olhos parecem duas fendas horizontais. Quando a vemos aproximar-se, a vontade é de nos escondermos até ela ir embora, como se isso fosse possível! Ela não desiste fácil quando quer alguma coisa. É uma pessoa difícil, muito difícil, de lidar. Tem distúrbio mental e postura agressiva, embora nunca tenha agredido fisicamente ninguém na Unidade e acho que também não o fez em outros lugares. Em compensação, verbalmente, o faz a toda hora e a todos, nesse ponto é bem democrática. Nada a detém quando quer falar com alguém: várias vezes invadiu o meu consultório em meio a uma consulta porque queria ser atendida na hora, sem esperar. Tem um linguajar um tanto chulo, o que agride os outros pacientes, deixando-os constrangidos com sua presença. Certa vez, após uma perineoplastia, colocou na cabeça que o ginecologista a tinha costurado completamente, inclusive sua abertura vaginal. Foi muito difícil convencê-la do contrário, fiz de tudo, mas não consegui. Soube depois que ela foi até o Hospital onde havia sido operada e fez um escândalo. Outra vez, falou na sua casa que a enfermeira da Unidade que havia feito o seu CCO havia esquecido o espéculo dentro dela. As filhas, que não moram no bairro, vieram reclamar, mostrei-lhes o espéculo e perguntei se elas achavam possível esquecer esse instrumento dentro de alguém e essa pessoa conseguir levantar-se e ir embora depois: pediram desculpas. Dona M. continua aprontando aonde vai, vários hospitais e médicos se recusam a atendê-la . Apesar de fazer tratamento psiquiátrico, acaba não utilizando, ou fazendo-o incorretamente, os remédios. Para que conseguisse uma cirurgia oftálmica, teve que recorrer à justiça, pois os hospitais de referência não queriam atendê-la se não estivesse completamente controlada e medicalizada. Nessa época, ia constantemente na Unidade porque queria que eu telefonasse ao juiz e pedisse que apressasse o seu processo. E, por mais que eu explicasse que não tenho esse poder, ela não se conformava.
Um dia, estava tranquilamente terminando o meu atendimento quando recebi um telefonema da outra Unidade do mesmo bairro: queriam que eu entrasse em contato com a família de Dona M. porque ela havia tido um "surto " lá e o colega havia chamado a ambulância do hospital psiquiátrico para levá-la internada.Conseguimos localizar suas filhas e fui depressa para lá. Ela estava nervosa, xingando todo mundo, tentei acalmá-la, logo a ambulância chegou e, na mesma hora, suas filhas. Foi uma gritaria que acabou fazendo com que as filhas não deixassem que a internassem. Algumas poucas vezes, ela está calma e alegre. Nessas ocasiões, apelida a gente com nome de bichos: coruja, garça, e outros, e explica o porque de cada apelido, nós morremos de rir. Numa dessas vezes, carregou-me no colo e saiu andando para mostrar o quanto era forte, me deixando apavorada.
Sua chegada em qualquer lugar é pertubadora: questiona sua vocação, testa sua paciência, seu equilíbrio e sua capacidade de controle. Quando vejo seu vulto ao longe, quero desaparecer, principalmente quando não estou nos meus melhores dias. Mas não adianta fugir e tentar ignorar sua existência, ela existe e continuará vindo, xingando e exigindo respostas que não podemos dar, algumas justas, outras um tanto descabidas, sempre com seu jeito insistente e pertubador de ser. Seus olhos apertados transmitem uma revolta insana, eloqüente, assustadora. Mas ela existe e necessita de cuidados e, como profissionais de saúde, não podemos ignorá-la, não podemos apagá-la, temos que acolhê-la , suspirar fundo, engolir em seco, mas acolhê-la.
Outro dia no ônibus, a caminho de casa, a vi andando na rua e fiquei fitando-a enquanto caminhava. Falava sozinha, segurando uma sacola onde leva sua história. Daquele ângulo, parecia tão pequena, tão indefesa, sozinha no mundo dos que se dizem sãos, dos que não a toleram por ser diferente, por não ter padrões, por nos deixar confusos e sem respostas. Senti-me pequena e inacabada, como profissional e como ser humano. Vi-a atravessar a rua com seu diálogo consigo mesma, com seu eu, que a ouve e que compartilha de seus delírios. Afastou-se com seus passos rápidos e decididos, enquanto permaneci silenciosa e apagada na minha distância segura.
quarta-feira, 5 de maio de 2010
AOS VELHOS AMIGOS QUE PARTIRAM:
Este ano está me levando várias vidas. Vidas queridas, vidas vividas. Estão indo embora os contadores de histórias, de histórias reais e sofridas, mas contadas com a graça e a sabedoria de quem soube vivê-las e aproveitá-las, cheias de risos e detalhes , cheias de suor e trabalho. A infância dura na roça, a luta pela sobrevivência, o casamento, os filhos, os netos, e, muitas vezes, a solidão e o abandono. Seus olhos opacos pela visão entorpecida, seus corpos curvados, seus rostos qual terra que endureceu, seus dedos sulcados pelo arado do tempo. Seus sorrisos, ás vezes contidos pelas agruras a que foram submetido, outras vezes fartos como o das crianças, mas sempre presentes.Chegavam com suas bengalas, seus chapéus de palha, suas sacolinhas cheias de remédios e receitas, muitas vezes tão antigas , já indecifráveis, que teimavam em guardar. Não entediam essa língua de horários e receitas, de consultas e de remédios, iam na Unidade como quem vai visitar um amigo íntimo: não seguiam horários pré- determinados para nada, iam consultar quando achavam que deviam, tomavam os remédios quando lembravam e comiam o que podiam comprar. Riam da nossa teimosia insistente ao lhes dizer até o que comer e o que não comer , como fazer a comida, o horário que deviam acordar e dormir. Riam. Muitas vezes só no seu íntimo, mas riam. Ouviam-nos ás vezes calados, mas determinados a construir o resto de suas vidas do jeito que bem entendessem. Pelo menos agora, que já não existia mais compromissos com a vida dos outros, sem filhos pra criar, sem chefes para obedecer, sem enxadas para se curvar,seriam, finalmente, donos do seu fim. Iam-se com seus passos incertos, suas sacolas e bengalas, os lenços nos cabelos brancos, os pés endurecidos pela longa caminhada, a pele arada, curtida pelo sol, seus olhos de poeira(o pó de lembranças cobrindo o olhar), o riso parado no tempo . Seguiram o caminho determinado e construído pela vida, o caminho que conheceram a vida inteira e que é parte de sua construção como indivíduo. Seguiram, passos lentos e cambaleantes, para nunca mais voltar.
sexta-feira, 19 de março de 2010
Minha história se confunde com a dos meus pacientes, não sei mais se é minha mesmo ou se algum deles me contou e, naquele momento, as nossas vidas se misturaram e pensei ter vivido o que não vivi. Espero, de verdade que não seja minha, seja apenas de uma cabeça confusa de tantas histórias e cansada de tanta vida. Gosto do meu trabalho, de curar doenças e ouvir histórias: algumas tristes, outras engraçadas. Hoje peguei um táxi, voltando da Universidade Federal, onde estudo Ciências Sociais, e quando sentei, o motorista me disse:
_E aí, doutora, tudo bem com a senhora?
_ Tudo bem.
Respondi sem muita certeza de quem era meu interlocutor, afinal só via um perfil. Aparentava mais de cinqüenta anos, magrinho e baixinho. Até que continuou:
_ A senhora se lembra de onde me conhece?
Arrisquei:
_ Lá do Novo Paraíso. Mas o senhor mudou de lá, não foi?
_ Não, doutora, ainda moro por lá. A senhora é nossa médica, atendeu até meu netinho essa semana. A senhora lembra que me encaminhou pra tirar um tumor no braço? Fiquei bonzinho! E sabe os meus meninos que trataram de Hanseníase lá no postinho? Um deles já acabou o tratamento e sarou mesmo.
De repente lembrei de toda a família e da história de cada um e,também, que ele não aparecia há algum tempo na Unidade. Aproveitei para cobrar-lhe uma ida para ver se estava tudo em ordem com a sua saúde. Respondeu-me que estava bem graças a mim e me agradeceu por cuidar da sua família. Chegamos na minha casa, desejei-lhe um bom final de semana e desci. Fiquei pensando na nossa conversa e em como é gratificante ser médica de família. De repente o cansaço passou e veio uma sensação de bem-estar, de dever cumprido. É, acho que ainda tenho que continuar, que ainda sou útil. Desafaço-me das histórias que povoam minha cabeça como quem limpa a poeira de um móvel e elas se dispersam no ar. Podem ser minhas, podem ser de outras vidas, ou de outras pessoas, não importa agora. Somem com o vento. E, por alguns instantes, não tenho mais histórias, sou leve. Sem marcas, sem lembranças, sem passado e sem futuro, apenas sou.
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
A HISTÓRIA DE R.
Era um senhor forte, a barriga proeminente, mas tranqüilo e sorridente. Tratava há vários anos de hipertensão e diabete, tinha mais de 65 anos e um sorriso largo no rosto. Era casado e morava com sua esposa numa chácara na periferia do bairro. Ela também tratava de várias patologias, além de depressão Vinham sempre consultar , embora seu R. nem sempre seguisse as recomendações e o tratamento correto para as suas doenças: não emagrecia, gostava de um docinho, e quando viajava, então, era um problema, esquecia que tinha Diabete. Outra coisa difícil era convencê-lo a usar Insulina, dizia que preferia morrer a ter que tomar injeção todo o dia. Isso dificultava muito o controle de sua doença, mesmo ele tendo consciência de todas as complicações decorrentes dela.A penúltima vez que viajou para o Pará, há mais ou menos 2 anos, chegou na Unidade com uma glicemia altíssima, tivemos que encaminhá-lo ao Pronto Socorrro para controle. Gostava de presentear a todos da Unidade com limões que tinha na chácara, e eram muitos, além de trazer mandava que fôssemos lá buscar a hora que quiséssemos. Sua esposa, por sua vez ,me dava de presente doce de limão em calda que fazia e trazia nos potes de vidro enfeitados.A última vez que o consultei estava com a glicemia alterada e a auscuta cardíaca não estava das melhores, preveni-o para ter cuidado, ajustei o medicamento e encaminhei-o ao Cardiologista para avaliação, logo depois entrei de férias. Semana passada, Leci, técnica de enfermagem da Unidad, me ligou e disse que o sr. R. havia sofrido um enfarte fulminate no fim de semana, e não havia resistido. Fiquei consternada e sem palavras, gostava muito daquele teimoso. Vejo sua imagem sorridente carregando uma sacola de limões para nos presentear. Foi-se pra sempre, fez sua derradeira viagem de forma rápida e decidida como era seu perfil.Quando retornei ao trabalho, me depararei com sua ausência, não sei se inevitável, não sei se esperada,mas para mim é sempre uma partida única , é sempre um gosto de derrota.
Assinar:
Postagens (Atom)