terça-feira, 21 de abril de 2009

MENINOS

Hoje mais um jovem se foi. Para a maioria das pessoas que leram o jornal essa manhã, mais um no meio de tantos.Tantos Joãos, tantos Josés...
Alguns ainda arriscam, em vez de um "mais um", um "menos um, bandido tem mesmo é que morrer".
Vê-lo cair, abatido como um animal, ou pior que um animal, deixa claro meus limites. Seus olhos sem olhares, vazios de alma, não são únicos. São velhas as histórias que se repetem: pais trabalhando, filhos desassistidos e aí o chamado irresistível das ruas, das drogas, da morte. Ano após ano, o mesmo enredo sangrento com fim trágico. E mesmo assim assistimos calados, como crianças que ouvem uma estória de terror e dormem assustadas até o dia em que, de tanto ouvi-la, não mais assustadas, apenas dormem.
Lembro-me do seu rosto na última conversa que tivemos. O ruído do riso permanece nos meus ouvidos. Agora, carrego mais uma morte. São tantas. São tantos os rostos que me sorriem meninos, tantos os rostos. Os políticos discutem sobre a próxima copa do mundo e os meninos morrem. As pessoas se revoltam por uma fatalidade em específico e, na periferia, os meninos morrem todos os dias. Ninguém se comove, ninguém se indigna. Foram crianças como os nossos filhos, como os nossos netos, que iam à escola e gostavam de jogar bola e soltar pipa, apenas trilharam caminhos diversos: os caminhos que lhes pareciam mais promissores, que lhes permitiam experimentar a falsa sensação de poder e liberdade emprestada pela droga. Sentiam-se fortes e poderosos, achavam que eram o que não eram e o que nunca seriam. Só eram meninos que se perderam no meio do caminho da vida. Vejo-os nascerem, crescerem e tento alertá-los, mas a minha voz é fraca e meu discurso distante e solitário, o dia a dia nos becos do mundo lhes oferece respostas mais rápidas para sua necessidades. As ações do Estado não conseguem penetrar nas ruelas escuras do bairro, não transformam seu cotidiano, apenas matam a fome e sufocam a dignidade.
Os caixões de papelão saem das casas humildes e as mães choram por seus meninos. Só elas choram. Fossem o que fossem, fizessem o que fizessem, meninos perdidos, meninos drogados, sim, mas apenas meninos.

sábado, 18 de abril de 2009

ADAPTAÇÃO

Indo fazer um parto domiciliar


Assim que cheguei a Ribeirão Cascalheira, levaram-me à Casa dos Padres, morada dos sacerdotes, freiras, incluindo Bia (a enfemeira que serviu de ponte entre mim e a nova vida), e agentes da pastoral. Encantei-me com a casa de adobe, coberta por palha, como a maioria das casas da região, e muito acolhedora. Receberam-me muito bem e lá passei a minha primeira semana, enquanto esperava uma casa onde pudesse morar. O primeiro choque de realidade aconteceu quando, no banheiro, deparei-me com um buraco no chão em lugar de vaso sanitário. No momento primeiro me recusei a utilizá-lo, até que não tive outra saída. Era o início de uma série de conflitos pessoais por quais eu passaria.
Mínima, a cidade acompanhava o trajeto da Br 158, que era sua avenida principal, responsável por cortar a cidade de fora a fora. Havia pequenos comércios, uma escola municipal, uma delegacia e um posto de saúde estadual, onde, afinal, eu iria trabalhar. A luz elétrica de toda a cidade provinha de um motor a diesel que volta e meia dava problema e que funcionava apenas no limitado horário das aulas noturnas, das 19h às 23h: quatro horas por dia. Não havia correio, nem telefone. Água encanada, então, nem pensar. A água utilizada tinha origem em cisternas, existentes em todas as casas, que não eram em sua maioria imunes à seca.
Durante essa primeira semana, Bia me levou para conhecer as lideranças da cidade e o posto de saúde. Pequeno e abandonado pelas autoridades, a unidade contava com móveis e equipamentos, em sua maior parte, doados pela população ou pela igreja. Não havia enfermeiros, tampouco auxiliares de enfermagem, apenas três joves contratados pela SES como agentes de limpeza, mas que estavam sendo treinados por Bia para desempenharem também a função delegada, naquela época, aos atendentes de enfermagem. Treinamento esse que continuei. Mais tarde frequentariam o curso oferecido pela Secretária de Saúde para terem o título por direito.
Passada a primeira semana e as primeiras impressões, mudei-me. De alvenaria e quatro cômodos, minha casa era uma das melhores da região e tinha por vizinha da frente a república dos professores, a maioria deles vindos de Belo Horizonte, através de contatos com a Prelazia, para lecionar no período noturno da escola.
Em meu primeiro dia de trabalho, toda a cidade apareceu no posto para se 'consultar' comigo na ânsia de conhecer a nova médica. Trabalhei o dia inteiro, só parando para almoçar na casa de um morador. No fim da tarde, louca para tomar um banho e descansar, me deparei com o problema de não ter comprado corda, nem balde, além de não ter mandado 'esgotar' a cisterna, de forma que a água encontrava-se suja e, assim, imprópria para uso. Ninguém tinha me avisado da necessidade de se providenciar essas coisas. As únicas pessoas com quem tinha intimidade eram a Bia e o pessoal da igreja, mas a casa deles era longe e já estava escurecendo. Desanimada e sem saber o que fazer, entrei em casa e encontrei um problema infinitamente maior na parede: uma aranha enorme, que provoca em mim uma quase fobia. Com o coração acelerado, corri para o quarto e tranquei a porta. Foi a primera vez em que senti vontade de chorar, com saudade do meu quarto, do conforto da minha cama, do chuveiro elétrico, detalhes que antes atuavam desapercebidos em minha vida e que agora me faziam tanta falta. Como trilha sonora desse singular momento, as vozes dos profressores, acompanhada do violão, se avizinhavam. Sabendo que as aulas ainda não tinham começado, resolvi ir até lá pedir ajuda. Receberam-me muito bem, convidando-me a sentar, e logo estava cantando com eles. Quando me senti mais à vontade, contei-lhes os problemas e eles prontamente me ofereceram o banheiro para que eu tomasse banho e uma rede pra dormir, longe da aranha. Propuseram-se também a procurar a aranha no dia seguinte. Aceitei sem pestanejar. Dormi um sono profundo de satisfação.

ADAPTAÇÃO- PARTE II


Eu conversando com paciente
na U.S de Cascalheira



Saindo de cena os problemas de natureza doméstica, passei a enfrentar os relacionados ao trabalho, além dos estruturais, que iam da falta de água e luz à falta de equipamentos. No primeiro mês fui acordada sistematicamente de duas a três noites por semana para atender casos que, em sua maioria, não eram de qualquer urgência. E para isso também fui tirada muitas vezes da mesa do almoço. Dores de cabeça, gripe, coceira no corpo e outras coisas rotineiras constituiam quase a totalidade dos chamados em horas impróprias, que aconteciam por comodidade ou por não terem claro qual era o meu papel ali. Cansei-me e lembrei vividamente do conselho me dado por Bia antes de ir embora: "Coloque limites e horários de atendimento para que o povo deixe você descansar. Se não o fizer, vai desistir."
Segui o conselho e passei a atender fora do horário só o que era realmente urgente. Essa atitude, claro, teve reações: a população começou a reclamar para o pessoal da Prelazia, que julgavam responsável por minha vinda. No contexto em que nos encontrávamos, fim da ditadura militar, nos trabalhos populares, principalmente os realizados pela igreja católica através das pastorais, prevalecia a opinião popular, mesmo quando injusta, como uma espécie de retratação pelos vinte anos de silêncio que a Ditadura conferiu ao povo. Era natural que isso acontecesse, na ânsia de contrapor o regime militar, processo que mais tarde amadureceu. Por achar uma prática muito paternalista, discordava dela e não abri mão do que eu considerava justo.
De passagem pela cidade, o bispo Pedro casaldáliga veio conversar comigo e em certa altura disse:



_Você tem que ter paciência com o povo.
Ao que revidei:


_Não, bispo, o povo é que tem que ter paciência comigo. Quem deixou o conforto de casa, a família e os amigos fui eu.
Com a sabedoria que lhe é peculiar, olhou-me e balançou a cabeça concordando.
Dei-me um tempo de seis meses para que as pessoas se adaptassem a mim e eu a elas. Se ao fim desse período essa relação fosse impossível, eu admitiria meu erro, mas iria embora. Não saberia trabalhar da forma que eles queriam. Contei minha decisão ao padre que mais se fez meu amigo. Enfim, após os seis meses, as pessoas só me procuravam em noites de emergência, respeitavam meu horário de almoço e participaram comigo da criação de uma Comissão de Saúde( equivaleria hoje a um Conselho Gestor) superatuante, que me ajudava a resolver os problemas da Unidade, e do primeiro curso para Parteiras Leigas, com apoio da SES.
Fiquei e finquei minhas raízes naquele solo pedregoso e vermelho. Aos poucos, assimilei o jeito de viver daquele povo, o "Siá" que usavam para dirigir-se a mulheres. Compreendi as lavadeiras indo labutar no córrego e voltando nos fins de tarde com a trouxa na cabeça e os filhos nas mãos. Tomei parte do forró de sábado na casa do Satú, da luta violenta que se travava pela terra, do amor das parteiras que faziam seu trabalho sem cobrar nada por ele, das serestas noturnas à porta das casas. Aprendi a admirar o trabalho da Prelazia e reconhecer que existiam realmente religiosos que fizeram opção pelo lado mais fraco, vivendo de forma humilde tal como o povo.
Esse trecho da minha vida foi uma experiência intensa e bela. Faz parte da minha história, ajudou na minha construção como ser-humano, ponteou a minha personalidade. Anda comigo e se faz presente em cada decisão que tomo. Carrego, hoje e sempre, a terra vermelha que manchou meus pés, porque também marcou minha alma.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

FORASTEIRO

Iniciastes agora esse caminho forasteiro e já te arvoras dono da estrada, senhor dos viajantes. Enquanto lutavas outras batalhas, já estávamos com a enxada nas mãos abrindo esta estrada, outrora apenas uma trilha. Se olhares de perto a terra que pisas e que dizes conhecer, verás nela gotas de suor e pedaços de esperança, que foram ficando em cada trecho, cada curva, marcas dos que a construiram. Fala baixo, não grites e desce desse palanque que subistes. Estou longe, muito longe, de ti e de onde estou te enxergo pequenino e não te entendo. Chega mais próximo se queres conversar. Se te calasses poderias ouvir as vozes dos que já percorreram esse caminho e conhecem seus segredos e suas ciladas, mas insistes em ouvir-te apenas ou o murmurinho daqueles que te rodeiam. Se queres segui-lo, põe o pé no chão e caminha, passo a passo, que ele é de todos, mas respeite a sua história e a daqueles que o construiram, pois suas veredas se misturam e suas vidas são feitas da mesma matéria. Se desistires porque são muitos os percalços, como tantos o fizeram, não me surpreenderás, continuarei. Olho-te ao longe. No meu ouvido, ecos dos teus gritos. Continuo sem tua ajuda, continuo apesar de ti. A estrada é infinita e infinito é meu destino. Quero apenas respeito.