Os dias passam rapidamente me atropelando, não sobrando tempo para pensar, nem para escrever. Os conflitos se multiplicam no bairro, tantos, que acabo sem saber realmente por quem lutar ou contra quem lutar. Às vezes, acho que meu inimigo é o Estado, irresponsável e cego na sua percepção equivocada e superficial dos problemas, às vezes, acho que é a burocracia, fria e estática, como um muro quase intransponível à minha frente, outras, acho que é a falta de vontade de lutar . Suspiro e penso :"será que sou eu o problema? Que já estou cansada e doída de tanto brigar?". Olho à minha volta e lembro da menina, ainda adolescente, que chegou drogada na maternidade para ter o filho prematuro. Aquela que segurava o filho como se fosse uma "coisa", sem vida, sem necessidades. Um dia me ligaram na Unidade para avisar que essa menina ─ mãe-menina ─ drogada e discutindo com o marido, acabou deixando cair a criança, que, com seus dez dias de vida, estava suja e desleixada, igual à mãe. A enfermeira foi ver a situação do bebê, enquanto eu ligava para o Conselho Tutelar. Bem, na casa de uma vizinha, já havia sido alimentada e dormia. No dia seguinte, o Conselho Tutelar foi até lá e levou consigo a criança. O outro filho da menina, um pouco mais velho, mas de apenas dois anos, ficou. Disseram, o Conselho Tutelar, que ele não precisava ir por não sofrer risco de morte. Fiquei sem entender.
Para reaver a criança, deram ordens para que a mãe se tratasse por três meses da dependência química, já que os avós, pais dela, não quiseram se responsabilizar pelo menino.
Como estava drogada na hora que levaram o filhinho, a mãe só foi sentir falta dele no dia seguinte. Aí, chorou, xingou, acusou os vizinhos de chamarem o Conselho, antes de se conformar e, mais calma, se comprometer com o tratamento. Tratamento? Como e onde? A única política pública para o viciado aqui é a cadeia, tratamento esse inevitável, quando o viciado não morre antes.
Eu é que sei de criança que vai até Boca de fumo para comprar droga pra mãe. Vejo gestantes vagueando pelas ruas, quando deveriam estar fazendo o pré-natal, buscando apenas formas de ganhar dinheiro para comprar sua droga. Ouço mães desesperadas me pedindo ajuda para seus filhos, desaparecido nas noites, zumbis, carregando o que conseguem pegar ou roubar para trocar por cocaína. Vejo mulheres que buscam seus parentes sumidos e enfrentam, corajosamente, os traficantes. E permaneço muda, as mãos atadas, sendo um nada.
Minhas palavras de encorajamento e solidariedade soam ridículas diante do sofrimento de mil mães. Sei exatamente o que elas sentem e onde essa busca vai acabar. Nós todas sabemos. Esperam de mim uma resposta, uma saída que eu não posso dar. Por minha vez, quero delas uma coragem e força que não tenho.
Assim, cada uma continua seu caminho e sua luta. Feitas da mesma dor, elas choram lágrimas que meus olhos não conseguem derramar e eu carrego a semente da revolta que elas desconhecem.
Mãe-meninas caminham com suas barrigas grandes e seus meninos nos braços, jovens que conheci ainda crianças . Prisioneiros da liberdade. E sou eu a mera coadjuvante nessa luta de cartas marcadas, onde só existe um vencedor. Ao outro, resta viver. Sem dignidade, sem respeito, sem ideais, apenas sobreviver ao dia a dia. Perdeu sua família, amigos, emprego, perdeu seu orgulho, sua capacidade de amar. Seus olhos vazios, sem sentimentos, sem revolta, sem expressão e sem alma ,refletem o nada.