segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A HISTÓRIA DE M.

Idoso, negro e magro, Seu M. morava lá no bairro há muitos anos. Era viúvo e tinha uma família grande, repleta de filhos e netos, muitos deles morando também lá no bairro. Já fora vítima de patologias como hanseníase e tuberculose, além de ser hipertenso. Gostava muito de andar e o fazia quase sempre sozinho, descendo e subindo a rua com um bastão, ora para lhe dar sustentação, ora para afastar pessoas indesejáveis, não titubeava em bater em quem vinha lhe incomodar, nessas ocasiões o mínimo que fazia era quebrar um pertence do sujeito, como vidro de carro e bicicletas.

Em época de campanha de vacinação, costumamos vacinar em casa os idosos acamados, os cadeirantes, os que por algum motivo não podem ir à Unidade e, numa tentativa de convencê-los, os que se recusam a tomar vacina, figurando nesse último grupo Seu M. A técnica de enfermagem do Posto, Tonha, foi encarregada na última vez de ir até a casa de Seu M. para explicar-lhe a importância da vacina e da gravidade da gripe em pessoas idosas, sendo expulsa sob a ameaça do famoso bastão. Trouxe-nos a resposta dele:

_ Não vou tomar essa porcaria de vacina, porque foi o presidente Fernando Henrique que mandou dar pra matar os velhos pra ele não precisar pagar aposentadoria.

Rimos muito, mas ele e outros não tomaram a vacina com medo de estar envenenada.


Era muito engraçado também, além de ser um problema, quando Seu M. ia até o Posto para pegar seu remédio para hipertensão: como os fornecedores dos medicamentos adquiridos pela Prefeitura não eram sempre os mesmos, a embalagem do remédio variava e Seu M. só o tomava quando vinha na prateada. Em outra cor qualquer ou transparente, não havia quem o fizesse levar o medicamento, ele devolvia e ainda ficava bravo.

O jeito era guardar, exclusivamente para ele, em estoque os remédios de embalagem prateada para que quando outra embalagem viesse tivéssemos uma reserva. Ou trocávamos com outros pacientes e outras Unidades.

Fora essas "paranóias", Seu M. era uma pessoa alegre, que gostava de tocar e cantar e, apesar de ter mais de setenta anos, ficava muito feliz quando tinha oportunidade de mostrar seu trabalho. Ele sempre dizia que tinha uma banda, mas que os componentes dela se resumiam a ele mesmo: compunha, cantava e tocava, além disso, inventou um equipamento que seu neto transportava num carrinho de mão quando tinha alguma apresentação. Sanfona nas mãos e pés nos bumbos do equipamento inventado faziam da "banda Nó Cego" uma experiência interessante e pitoresca.

Um dia chegou na Unidade numa alegria só para me contar que tinha gravado um CD independente, na gravadora de um amigo, e queria me presentear com o primeiro disco, porque, segundo ele, só assim conseguiria vender os demais. Senti-me feliz e um pouco emocionada, agradeci o presente e parabenizei-o pela conquista. Meus alunos de medicina compraram o CD e ele ficou radiante.

Nos últimos tempos cheguei a ficar meses sem vê-lo, soube apenas que estava passando muito tempo na casa dos outros filhos, em outros bairros. Chegou-me então a notícia de sua morte. Fiquei muito triste de não ter podido me despedir.

Lá se foi, com seu bastão, sua irreverência e coragem de viver. Deixou apenas, silenciosa, no canto da casa, a "banda" que sempre o acompanhava com orgulho. Sumiu da minha vista, sumiu da minha vida, mas permanece para sempre, personagem vivo,pintado com amor, num dos quadros pendurados na minha vasta parede da memória.

sábado, 10 de outubro de 2009

MEMÓRIAS

No Posto de Saúde de Cascalheira, uma das atendentes de enfermagem chega até mim e comenta que na noite anterior uma mulher do "cabaré" tinha levado uma surra de um peão. E emenda que ouviu isso quando uma das amigas da mulher contava para o dono da farmácia. Perguntei o porquê da mulher machucada não ter ido até mim, no posto, para que eu cuidasse dos ferimentos. Ao que a atendente, deixando-me intrigada, respondeu que elas não freqüentavam o Posto porque ele era do povo e o povo não ia gostar de encontrá-las aqui.


Chamavam em Cascalheira de "rua do cabaré" o local onde ficavam as casas de prostituição, que consistiam em seis ou sete casas, afastadas da cidade, governadas por um homem ou uma mulher: os "donos" das meninas.


Elas saiam pouco, preferiam mandar os empregados à cidade. Quando decidiam sair, no entanto, chamavam a atenção pelas roupas extravagantes, constratando com a roupa simples e as chinelas das mulheres do lugar, e porque tinham dinheiro e gostavam de gastá-lo. Assim, enquanto os moradores olhavam-nas com um misto de desconfiança e indignação, os comerciantes as tratavam com toda a deferência com que se trata os bons clientes.


Era interessante como as mulheres de Cascalheira enxergavam as meninas. Enquanto moravam e trabalhavam na "rua dos cabarés", eram ignoradas e desprezadas, atitudes justificadas pela moral cristã, apesar da igreja de lá não compartilhar desse pensamento, pelo ciúmes que sentiam de seus homens e, grande parte, pela inveja da juventude, da beleza e do dinheiro delas. Todavia, se alguma se casava e ia morar com o companheiro na cidade, deixando "a vida" e assumindo uma relação séria, passava imediatamente a ser aceita por todas.


Voltando ao ponto de partida da história, a moça que tinha sido agredida, resolvi que ia até sua casa avaliar a gravidade de seu estado. Luizinho, atendente de enfermagem, achou imprudente minha decisão, uma vez que estava há pouco tempo na cidade, ainda sob aceitação, e uma atitude dessa podia interferir no processo. Reuni, então, a Comissão de Saúde, composta por lideranças locais, a fim de expor a situação e, surpreendentemente, minha decisão foi apoiada por unanimidade.


Munida de instrumentos médicos e medicamentos, parti para a"rua dos cabarés" com Luizinho. Acatando a recomendação da Comissão, fomos após às três da tarde, porque, além das meninas acordarem após o meio-dia, evitava que encontrássemos ainda algum cliente da casa por lá, o que seria constrangedor.

Chegamos e o silêncio reinava, as casas eram de alvenaria, com cores fortes dispostas lado a lado. Bati de porta em porta procurando a moça agredida, que, enfim, já estava melhor, aproveitando para convidar todas as outras para uma reunião. Quando me reconheciam, olhavam-me com espanto e, muitas vezes, com desprezo.


Foram chegando ao local combinado uma a uma. Vinham bocejando, algumas com os cabelos molhados do banho recente, outras com a maquiagem borrada da véspera. Acomodando-se, umas curiosas, umas desafiadoras, começaram, a fim de me testar, a me deixar constrangida, conversando sobre os acontecimentos da noite anterior, não poupando detalhes picantes e desnecessários.


Ouvi tudo com tranqüilidade. Ao perceberem não haver me intimidado, ficaram mais à vontade e passaram a demonstrar interesse real por tudo que eu falava. A reunião mostrou-se agradável e produtiva, girando em torno de assuntos como DSTs e violência contra a mulher. Ao final, ficou acordado que eu abriria a Unidade uma vez por semana na hora do almoço só para atendê-las e que uma vez por mês viria até elas conversar sobre temas de saúde, propondo, por fim, que fosse eleita uma representante entre elas para fazer parte da Comissão de Saúde. E assim foi feito.


Distraia-me muito nos dias em que iam na Unidade, com sua alegria e irreverência, enchiam de risadas o ambiente. A Comissão de Saúde recebeu sua representante eleita de braços abertos, indo visitá-la, inclusive, quando esteve internada, enchendo-na de orgulho.


Algumas coisas, no entanto, demoravam mais a mudar. Um dia, ao sair do açougue, encontrei uma das meninas e cumprimentei-a, perguntando como estava, ela sacudiu a cabeça num sinal positivo e se afastou rapidamente. No dia seguinte, quando foi à Unidade, disse que eu não precisava cumprimentá-la quando a encontrasse na rua. Rebati dizendo que eu não tinha motivos para sentir vergonha de cumprimentá-la em qualquer lugar que estivesse. Ela sorriu e abaixou a cabeça.


A partir desse dia, pude contar com elas para tudo. Sempre que enfrentamos momentos difíceis, estavam prontas para ajudar.De forma discreta, contribuiam com dinheiro ou trabalho. Quando fui demitida, inclusive, soube que, cheias de indignação, fizeram um abaixo- assinado pedindo a minha volta.


Minha lembrança delas é de meninas-mulheres de riso fácil e malícia, enchendo qualquer ambiente de alegria. Fortes e frágeis, decididas e inseguras, risonhas e tristes. Disfarçando com maquiagem as olheiras de noites mal dormidas e maus tratos sofridos. Fumavam e bebiam e, apesar de atrevidas, respeitavam os limites impostos pela sociedade local. Solitárias e solidárias damas da noite. Aprendi com elas a olhar além da imagem do ser- humano, respeitando sua individualidade e sua história, sem fazer julgamentos precipitados. Aprendi, principalmente, a capacidade de rir da vida.


Eram mulheres sofridas, com vida e sonhos comuns. Queriam ter filhos, marido e uma casinha para chamar de sua. Queriam ir à igreja aos domingos e fazer pamonha na roça. Eram moças como todas as outras, que por algum desencontro ou descaminhos trilharam outras vidas e não souberam mais voltar.