Idoso, negro e magro, Seu M. morava lá no bairro há muitos anos. Era viúvo e tinha uma família grande, repleta de filhos e netos, muitos deles morando também lá no bairro. Já fora vítima de patologias como hanseníase e tuberculose, além de ser hipertenso. Gostava muito de andar e o fazia quase sempre sozinho, descendo e subindo a rua com um bastão, ora para lhe dar sustentação, ora para afastar pessoas indesejáveis, não titubeava em bater em quem vinha lhe incomodar, nessas ocasiões o mínimo que fazia era quebrar um pertence do sujeito, como vidro de carro e bicicletas.
Em época de campanha de vacinação, costumamos vacinar em casa os idosos acamados, os cadeirantes, os que por algum motivo não podem ir à Unidade e, numa tentativa de convencê-los, os que se recusam a tomar vacina, figurando nesse último grupo Seu M. A técnica de enfermagem do Posto, Tonha, foi encarregada na última vez de ir até a casa de Seu M. para explicar-lhe a importância da vacina e da gravidade da gripe em pessoas idosas, sendo expulsa sob a ameaça do famoso bastão. Trouxe-nos a resposta dele:
_ Não vou tomar essa porcaria de vacina, porque foi o presidente Fernando Henrique que mandou dar pra matar os velhos pra ele não precisar pagar aposentadoria.
Rimos muito, mas ele e outros não tomaram a vacina com medo de estar envenenada.
Era muito engraçado também, além de ser um problema, quando Seu M. ia até o Posto para pegar seu remédio para hipertensão: como os fornecedores dos medicamentos adquiridos pela Prefeitura não eram sempre os mesmos, a embalagem do remédio variava e Seu M. só o tomava quando vinha na prateada. Em outra cor qualquer ou transparente, não havia quem o fizesse levar o medicamento, ele devolvia e ainda ficava bravo.
O jeito era guardar, exclusivamente para ele, em estoque os remédios de embalagem prateada para que quando outra embalagem viesse tivéssemos uma reserva. Ou trocávamos com outros pacientes e outras Unidades.
Fora essas "paranóias", Seu M. era uma pessoa alegre, que gostava de tocar e cantar e, apesar de ter mais de setenta anos, ficava muito feliz quando tinha oportunidade de mostrar seu trabalho. Ele sempre dizia que tinha uma banda, mas que os componentes dela se resumiam a ele mesmo: compunha, cantava e tocava, além disso, inventou um equipamento que seu neto transportava num carrinho de mão quando tinha alguma apresentação. Sanfona nas mãos e pés nos bumbos do equipamento inventado faziam da "banda Nó Cego" uma experiência interessante e pitoresca.
Um dia chegou na Unidade numa alegria só para me contar que tinha gravado um CD independente, na gravadora de um amigo, e queria me presentear com o primeiro disco, porque, segundo ele, só assim conseguiria vender os demais. Senti-me feliz e um pouco emocionada, agradeci o presente e parabenizei-o pela conquista. Meus alunos de medicina compraram o CD e ele ficou radiante.
Nos últimos tempos cheguei a ficar meses sem vê-lo, soube apenas que estava passando muito tempo na casa dos outros filhos, em outros bairros. Chegou-me então a notícia de sua morte. Fiquei muito triste de não ter podido me despedir.
Lá se foi, com seu bastão, sua irreverência e coragem de viver. Deixou apenas, silenciosa, no canto da casa, a "banda" que sempre o acompanhava com orgulho. Sumiu da minha vista, sumiu da minha vida, mas permanece para sempre, personagem vivo,pintado com amor, num dos quadros pendurados na minha vasta parede da memória.