Conhecia-a há uns dez anos, Maria dos olhos azuis-água, levando seus filhos, que eram cinco, com freqüência à Unidade para eu consultar. Contradizendo os escandalosos olhos, era um pessoa calada e humilde e seus filhos, apesar da simplicidade das roupas, estavam sempre bem arrumados. Sua casa era pequenina e no meio de um terreno que conservava, assim como a seus filhos, limpo e cuidado.
Numa consulta de rotina, ansiosa e desconfiada, Maria começou a falar coisas que não eram de seu feitio discreto e quando tentei dar continuidade ao assunto, a fim de entendê-la, calou-se encerrando a conversa e a consulta. Poucos dias depois chegou-me a notícia de que ela e sua família haviam se mudado do bairro. Meses se passaram até que recebi a inesperada visita do marido de Maria. Estavam morando numa região rural perto da cidade e viera me procurar porque, segundo ele, a mulher tinha "enlouquecido": falava coisas desconexas, fugia de casa, passando, ás vezes, o dia inteiro desaparecida e deixava os filhos pequenos sozinhos. Ao chegar do trabalho e encontrar esse cenário, saia para procurá-la, dia após dia. Desorientado, não sabia o que fazer e assim resolveu voltar ao bairro para poder cuidar da saúde dela.
Dois ou três dias depois, trouxe-a até mim. Estava mais magra e o cabelo, outrora sempre preso e arrumado, quedava-se despenteado. No consultório, ficou de cócoras no canto da sala e não falava. Aproximei-me dela e a chamei pelo nome, me encarou rapidamente com os olhos azuis estranhos e agitados, estendi minha mão e pedi para que se levantasse e ela obedeceu calada. Não tive dúvidas de que era um surto psicótico e que precisava urgentemente de ajuda, assim como sua família. O marido foi demitido do emprego por causa de suas constantes faltas, cometidas para cuidar dela e dos filhos. Estes, por sua vez, assustados, sentiam falta da mãe e mal tinham o que comer. Encaminhei Maria para tratamento especializado e, até que as coisas se normalizassem, a equipe da Unidade ajudou a família com cestas básicas, roupas e outras coisas que necessitavam.
Iniciou o tratamento e com ele apareceram os efeitos colaterais dos medicamentos e a melhora lenta e gradual. Enquanto isso, seus filhos, crianças entre cinco e dez anos, assumiram a postura de pais enquanto à Maria foi relegado o papel de criança, de filha: davam-lhe os remédios e levavam-na pelas mão até a Unidade para se consultar, além de realizarem todas as tarefas domésticas sem deixar, no entanto, de estudar. O marido voltou a trabalhar e passava o dia todo fora.
Apareceu-me um dia Maria com os filhos e, ao dirigir-se a mim, olhei no azul de seus olhos e reencontrei-a. Tinha voltado e dessa vez era ela quem trazia os filhos pelas mãos. Voltara a ser mãe e eles, crianças. Dava impressão de ter retornado de uma longa viagem e simplesmente retomado a vida de onde havia deixado. Não sei que lembranças tem desse tempo, nem onde estava durante esse período, mas retornou e impôs a seu outro eu, agitado e confuso, o silêncio, assumindo seu lugar de mãe, de mulher, forte e serena como sempre fora. No olhar azul celeste, lampejos de insanidade.